25.8.11

Para Ricardo




Hoje, 25 de agosto de 2011, Ricardo completa 35 anos. Em 2000, escrevi uma carta para ele e a compartilho. Parabéns, querido!


Porto Alegre, 25 de agosto de 2000
Ricardo, meu querido filho

Há 24 anos atrás, no dia 22 de agosto, morria Juscelino Kubitschek. Nós morávamos em Brasília, cidade que amava seu construtor. Era 1976 e a democracia ainda não tinha dado muitos sinais de vida. As proibições ainda eram muitas e, o pior de tudo, não se tinha clara a noção do que era proibido.
Juscelino morreu num acidente de carro, até hoje não muito bem explicado e seria enterrado em Brasília, marco de sua vida. Os militares temeram e tentaram fazer um enterro discreto.
O corpo chegou de avião e, apesar do grande número de pessoas que se espalharam pelas avenidas para recebê-lo, o carro que o conduzia passou em alta velocidade.
Esta era a ordem dos militares.
A frustração e a tristeza tomaram conta de todos. A ditadura foi um tempo de grandes frustrações e tristezas para todos nós...
O corpo foi velado, se não estou enganada, no Congresso e seria levado ao cemitério à noite. Não deveria haver nenhum tipo de manifestação popular.
Esta era a ordem dos militares.
Mas não foi assim. Naquela noite, a cidade espalhada, de grandes avenidas, com jeito de “cidade do futuro” dos filmes de ficção científica, ganhou emoção: a enorme tristeza dos candangos a invadiu.
Brasília, até então tida como uma cidade sem alma e sem coração, presenciou um dos momentos mais lindos da sua história. Aquele povo pobre, que a construiu e que amava Juscelino, dobrou a vontade dos militares e saiu, em emocionado cortejo, acompanhando o carro de bombeiros que levava o caixão. Ao contrario do que havia acontecido na chegada do corpo à cidade, eles impuseram o seu ritmo ao cortejo: lento, chorado, dolorido...
Eram milhares, cantavam o “Peixe Vivo”, a música preferida de Juscelino e, ao mesmo tempo, choravam, choravam muito...
Choravam naquele choro toda a tristeza dos trabalhadores explorados, que foram expulsos para a periferia da cidade que construíram.
Foi a força da vontade e da emoção das pessoas se impondo à estupidez da ditadura.

E nós estávamos lá, tu e eu.
Minha barriga estava enorme, eu estava muito inchada, mas queria compartilhar aquela emoção, queria estar presente.
O bom senso dizia que tu e eu não deveríamos estar ali. Já estavas pronto para nascer, eu me movia com dificuldade... O bom senso dizia que tu e eu não deveríamos estar no meio daquele monte de gente. Mas, eu não poderia perder este momento.
A Vó Dulce estava em Brasília para nos acompanhar, para te ver nascer. Afinal, estava por nascer o seu primeiro bisneto! E, se tu bem conheces a tua bisavó, lá estava ela conosco para ver o cortejo. Conseguimos dois banquinhos na casa da Maj e ficamos esperando por horas a fio, no meio da multidão.
E valeu, como valeu! Até hoje tenho aqueles momentos guardados no meu coração.
Pode ser que em algum lugarzinho de ti, tudo isto tenha ficado registrado. Tu estavas dentro da minha barriga e a minha emoção era tão grande que com certeza te tocou. Lembra?
Três dias depois fui ao médico para um exame de rotina. A consulta era às 11hs e 30 min e às 13hs tu já tinhas nascido. Muito preguiçoso, não “desceste” para te encaixar na rota de saída. E como tu já estavas pronto para vir ao mundo e a minha pressão estava altíssima, te tiraram na marra, lindo, gordinho...
Hoje fazem 24 anos da tua chegada, um dos dias mais importantes da minha vida e o ponto inicial de muitas e muitas e muitas alegrias e de alguns percalços Mas, acredito que tudo dentro do razoável, nesta mistura de coisas boas e outras nem tanto que compõem a nossa vida.
Querido filho, te desejo MUITA FELICIDADE, que sei que mereces e vais ter! 






18.8.11

família


Me dei conta que no blog não tem a foto dos filhos, da nora e do neto Gabriel. Achei esta, de março de 2011, em Florianópolis. Da esq. para a direita: Xico, Euzinha, meu pai Zeca, Ricardo com Gabriel no colo, Tati com Ramiro na barriga e Miguel.

3.8.11

Anões, Mídia & Deficiência



O texto que segue é o depoimento da jornalista gaúcha Lelei Teixeira no seminário "Mídia & Deficiência" organizado pela Assembléia Legislativa/ RS, na última semana de julho. Emocionante!

"Agradeço aos organizadores deste seminário a oportunidade de compartilhar com vocês um pouco da minha experiência e algumas inquietações que cercam a vida de pessoas que, como eu, têm uma deficiência. 

Falar de uma questão que me diz respeito é um desafio, até porque sou mais dos bastidores do que do palco. Como tratar de tema tão delicado, evitando cair na vitimização, no paternalismo, no heroísmo, no fetiche, no clichê, no estereótipo?

Falar com serenidade das dificuldades do dia a dia – e elas existem! – encarar a diferença, e a repercussão dessa diferença, no meio em que vivemos não é tarefa fácil. Mas é tarefa necessária, imprescindível nesses tempos em que tanto se discursa pela inclusão, acessibilidade, diferença, pluralidade.

A sociedade reserva um determinado lugar para aqueles que fogem aos padrões de normalidade sobre os quais o mundo está estruturado. Ninguém se espanta, por exemplo, ao ver o negro como porteiro, operário, empregada doméstica, porque este é o espaço que lhe cabe. Assim como ninguém se admira ao ver o homossexual como costureiro, cabeleireiro, fazendo o gênero pitoresco, irônico, de humor fino, ferino. O anão divertindo as pessoas, dando cambalhotas, sendo alvo de chacota, ou como figura mágica, também não espanta. É o que lhe cabe nesse latifúndio.

Partindo do universo dos bufões, desde a antiguidade os anões são pessoas marcadas pelo estigma de garantir a diversão de outros, de fazer rir, expondo-se de qualquer maneira. Vê-los assim, os bobos da corte, é perfeitamente natural. Vê-los responder ao discurso já dado sobre eles não espanta ninguém. Chega a ser condição para que sejam incluídos.

O espanto surge no momento em que rompem esses espaços. É aí que a diferença grita, assume outras proporções e a sociedade se defronta com o que não quer admitir: a rejeição, o preconceito. Já não está mais diante do estereótipo, do ser mítico, quase distante e, sim, da pessoa real, de carne e osso, com sentimentos, paixões, contradições e a sua DIFERENÇA. Diferença com a qual a sociedade não sabe lidar.

É aí que o deficiente, seja por razões físicas ou mentais, instaura a desordem num mundo aparentemente normal, desorganiza a frágil organização da sociedade. E as pessoas se enfrentam com a dificuldade e a necessidade de lidar com uma realidade que não querem ver: tratar o deficiente na exata medida do seu problema, com naturalidade. Ao ignorar ou excluir as diferenças certamente toma-se o caminho mais fácil e mais curto para a eliminação do humano, do caráter criativo e inusitado dos homens, que está no encontro das suas múltiplas possibilidades e capacidades.

Cabe, portanto, a nós, com a nossa dificuldade, subverter a ordem, extrapolar os espaços e recusar os papéis já dados, como o do bufão, o do “coitadinho”, da vítima ou o do herói.  Se para a sociedade é difícil conviver com a diferença, é fundamental fazê-la entender o valor e as possibilidades que as diferenças trazem. Resta-nos aprender juntos, fora dos estereótipos e dos discursos já instituídos, velhos e redutores.

Além do acesso físico, sem dúvida fundamental, a pessoa com uma deficiência precisa ser acolhida com a sua dificuldade, sem disfarces e pré-julgamentos; na sua dimensão real, sem contaminações, sem transformar-se em exemplo. Só assim construiremos relações mais humanas, definitivas para a eliminação do preconceito. “Ver com os olhos livres”, como disse o escritor Oswald de Andrade no Manifesto Antropofágico nos anos 20 do século 20.

Se é impossível adaptar a cidade às nossas necessidades, é perfeitamente viável contar com a boa vontade das pessoas. No caso dos anões, por exemplo, ser atendidos fora dos imensos balcões dos bancos, já será um avanço.

A mídia tem um papel fundamental neste sentido: mostrar a vida como ela é tratar de questões que envolvem a deficiência e o preconceito com naturalidade. É formadora de opinião, por isso tem uma enorme responsabilidade. Não pode ser linear e burocrata em suas análises e comentários. É importante que instigue, faça pensar, evitando o sensacionalismo, que não contribui em nada para causa nenhuma. Precisamos de mais civilidade, mais grandeza, mais humanidade e mais sabedoria ao tratar de temas delicados como esse.

Nós, os anões, somos poucos e pouco lembrados, quase invisíveis para a sociedade e os governos. Mas temos belos exemplos de reportagens sobre o nanismo. Desde os anos 80, procuro acompanhar o assunto na mídia. Nessa época, uma matéria de página inteira no jornal O Estado de São Paulo, com um título muito sintomático e sensível – “A solidão desta gente pequena” – chamou muito a minha atenção. Talvez aí eu tenha mergulhado definitivamente na minha condição. Há mais de 35 anos, a reportagem era pontual e trazia vários depoimentos de anões. Na verdade, trazia todas as questões que discutimos hoje, depois que inclusão e acessibilidade tornaram-se palavras da moda, politicamente corretas. Mais recentemente, em novembro de 2009, a reportagem feita pela jornalista Fernanda Zaffari para o Caderno Donna de Zero Hora, na qual minha irmã e eu fomos entrevistadas, foi de uma delicadeza rara, absolutamente fora dos estereótipos. Tratou do problema com naturalidade e nos mostrou como pessoas que vivem como qualquer outra. A repercussão dessa matéria ainda hoje nos surpreende.

Mas temos também péssimos exemplos de tratamento aos anões na mídia, especialmente em programas de televisão e rádio. Por uma dessas falhas de memória que Freud deve explicar, esqueci as datas, mas vale registrar. Comunicadores de programas como Manhattan Connection/GNT e Pretinho Básico/Rádio Atlântida fizeram comentários absolutamente infelizes e preconceituosos sobre os anões. Só viram o estereótipo, sem nenhum contraponto. Pelo discurso deles, quase nazista, não é delegado ao anão um comportamento humano. Como todo comunicador, que precisa ser interessante e preencher um espaço sem pensar e sem questionamentos, eles ironizaram grosseiramente a condição de vida dos anões, absolutamente presos ao estigma, demonstrando farta ignorância sobre a diferença e a deficiência.  

Para encerrar, lembro duas frases de canções de Caetano Veloso, que podem funcionar como uma bússola nessa nossa jornada: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” e “De perto ninguém é normal”.

Não somos nem vítimas nem heróis. Estamos na vida como qualquer pessoa, com a nossa dificuldade."