21.12.13

Iguape



No ano de 2004, em Porto Alegre, lancei o CD “Canções de Antigamente”.
Em função disto, dei uma entrevista à Rádio Gaúcha.
O programa era à tarde, mas como fez sucesso, foi reprisado na madrugada do fim de semana.

Em Iguape, no vale da Ribeira (São Paulo), um casal me escutou cantando as canções de antigamente e gostou.
Como eu havia divulgado meu e-mail durante a entrevista, eles enviaram uma mensagem: o casal, Wanda e Luiz, queriam comprar o meu CD.
Naturalmente, enviei um CD para eles de presente.

Começamos a trocar mensagens e, à distância, nos tornamos amigos.
Um dia, Luiz me contou que Wanda estava muito doente e lutando para viver.
Algum tempo depois, com uma linda dedicatória, recebi o livro escrito por ela neste momento difícil.
Mas, infelizmente, a doença venceu e sua morte me deixou triste.

Luiz e eu continuamos a troca de mensagens e passei a receber a “Tribuna de Iguape”, onde ele mantém uma coluna. O nascimento dos meus netinhos foi noticiado no jornal.
E assim, comecei a conhecer um pouco mais Iguape. As fotos desta cidade histórica me encantaram.
Pelo Facebook, comecei a acompanhar, também, o crescimento de Henrique, seu único neto, e as aventuras dos dois.

Agora, em 2013, Luiz e eu nos encontramos.
Numa viagem a São Paulo, Xico e eu fomos a Iguape.
Eu estava um pouco preocupada. Não sabia como seria este encontro, porque nunca nos havíamos visto...

E foi um belíssimo encontro!
Luiz nos esperava com Adriana, sua namorada, e não pareceu em momento algum  que estávamos nos vendo pela primeira vez. Realmente, já éramos amigos há muito tempo.
Ele nos levou à sua casa, onde nos esperava um delicioso almoço, com peixes e com suco de butiá (que nós não conhecíamos).
Depois, nos apresentaram a cidade.
Ficamos encantados com Iguape, com seus casarões, suas igrejas, sua arquitetura e suas histórias.

Xico e eu tínhamos pouco tempo e, por isto, a visita foi muito rápida, mas nossos corações ficaram agradecidos pela acolhida que tivemos.
E, por isto, queremos que este seja o primeiro de muitos encontros!


p.s. clique na foto para ver o álbum.



E publico aqui uma das crônicas escritas por Luiz Roberto de Oliveira Fortes na "Tribuna de Iguape".


OS ALMENDRADOS
Depois de nos esgueirarmos sob as marquises, escondendo-nos da chuva fina e fria que caía sobre Coimbra, eu e minha filha Gláucia embocamos numa jeitosa "leitaria" para o nosso indefectível café da tarde. Acomodados e atendidos, procurei na vitrine algum doce diferente para acompanhar o “tonel” de café. Os meus olhos escolheram o que parecia ser um biscoito. Fui servido, comi um e mais outro e a vontade ainda era repetir. Perguntei depois o nome do doce, cuja resposta, no sotaque lusitano, soou como “almedrunhos”.
Já por aqui, queria provar de novo o doce que me enchera o paladar e a alma. O “google”, a quem tudo buscamos, não me mostrou nada como “almendrunhos”. Tentei as combinações de letras e sílabas até chegar em almendrados, cuja descrição conferia com o que eu havia comido em Portugal. Logo vi as receitas, os ingredientes e o modo de fazer. Comprei o que precisava e solicitei que fosse tentada em minha casa.
À tarde, ansioso como quem espera um presente, já da porta senti que o doce havia sido feito. Estavam lá, guardados num vidro de boca grande, desses próprios para as crianças encherem as mãos sem dificuldade. O sabor estava excelente, mas não estavam macios, talvez porque tivessem ficado mais tempo no forno do que o necessário.
Comprei mais duas, três, quatro vezes os ingredientes. Tentamos fazer novamente. Mas, ou a massa ficava mole demais e escorria pela assadeira ou ficava dura demais, dificultando a mastigação.
Conversei com a doceira da esquina do Hotel São Paulo, para que ela me dissesse porque a massa não dava certo, mas a sua explicação, bem intencionada, envolvendo até o clima, não convenceu.
Num dia destes, almoçando no centro de São Paulo, ouvi alguém falar da Casa Mathilde, uma doceria portuguesa na Praça Antonio Prado. Não deu outra, depois do almoço, rumei pela São Bento até esse estabelecimento, onde, num belo ambiente, me deliciei mais de doces portugueses do que havia feito em Portugal. Inclusive do pastel de nata, em tudo idêntico ao célebre Pastel de Belém, o orgulho da culinária lisboeta.
Mas nem ali encontrei, como desejava, os tais almendrados, que podem ser típicos do Algarve, do Alentejo e até das Ilhas Canárias, onde certamente os teria provado o noviço José de Anchieta. A atendente me disse que esses docinhos caseiros não se prestam ao grande comércio, cujos produtos têm que ser procurados e vendidos em quantidades que deem lucro o seu fazer.
O fato é que, até agora não consegui fazer os almendrados como os provei em Coimbra. E, como em conversas acabei despertando a vontade alheia, estou a devê-los a dona Mariazinha que, também sem tê-los provado, tornou-se uma pretendente a essa iguaria de além-mar.

Penso até que os almendrados de lá não sejam melhores que os tantos doces daqui, mas que o sabor de lá deve estar na nossa alma, fazendo parte de nós, desde que aquele nosso remoto ascendente os provou pela última vez, no regaço do lar, entre pais e irmãos, e partiu para o Brasil. E o seu paladar saudoso busca ainda - através de nós - o sabor almendrado que ficou para trás.


9.9.13

Chile, setembro de 1973/ primeira parte

"Hay más verdad en los recuerdos que en la historia."
Remis Ramos Belmar


Para nós, brasileiros que vivíamos no Chile em 1973, o golpe não foi uma surpresa porque já tínhamos a experiência do golpe brasileiro. Mas, os chilenos não conheciam outra coisa senão a estabilidade das instituições democráticas e admitiam, quando muito, a possibilidade de um golpe branco, sem o uso da força. O fato é que, lá no fundo, todos nós tínhamos a ilusão de que Salvador Allende permaneceria no governo até o fim de seu mandato, apesar da constante tensão.

Com meus pais, embarcando para o Chile/ junho de 1971 

Cheguei ao Chile em 1971 para encontrar meu namorado, Renato Dagnino, que havia sido expulso da UFRGS pelo decreto 477 que já estava lá. Nós dois militávamos no movimento estudantil, em Porto Alegre. Ele fazia parte da diretoria do DCE/UFRGS e era presidente do CEUE (Centro dos Estudantes Universitários de Engenharia)e eu, estudante de Arquitetura, era simpatizante de um grupo trotskista.


Minha chegada a Concepción, no sul do Chile, num sábado à tarde, foi um pouco assustadora. Era inverno, fazia frio, chovia muito e fomos à Universidad de Concepción participar de uma reunião de estudantes e eu não entendia o que falavam, porque era muito diferente do castelho que eu tinha escutado e falado até aquele dia.
Mas, eu tinha 23 anos e uma alegria imensa por estar ali! O Chile do Presidente Allende, da Unidad Popular, do MIR e da via pacífica para o socialismo, era o sonho de todos os jovens de esquerda da América Latina (ou seria o sonho de todos os jovens de esquerda do mundo?).
O frio, a chuva, o vento e os pequenos "temblores" logo entraram na minha rotina, assim como a comida, o idioma e a cultura. Descobri novos amigos, reencontrei alguns e a vida entrou num ritmo novo e muito bom. 


Com Renato/ 1971

No comício do Presidente Allende em Concepción 
maio de 1972

No Chile aprendi a ser “dona-de-casa”. Filha única de mãe filha única e única neta, morando com avó e bisavó, além dos pais, eu não tinha a menor ideia de como cuidar de uma casa e de como cozinhar. Não sabia se alface se comia crua ou cozida e quando li numa receita “sal a gosto”, não sabia a quantidade que deveria colocar porque nunca tinha salgado nada na vida!
No início sofri um pouco, mas fui aprendendo. Por sorte, Renato sabia cozinhar, conhecia melhor do que eu as atividades domésticas e me ajudou muito. 
        Acabei aprendendo a fazer tudo: a cozinhar, limpar e organizar a casa, lavar a roupa e  aprendi até a costurar, mas à mão (como faço até hoje). Só muito depois da nossa chegada foi que conseguimos ter uma diarista para nos ajudar.
    Minha avó paterna se preocupava porque eu não era uma "mocinha prendada”, mas minha avó materna dizia que “quando eu precisasse, eu aprenderia”. E assim foi. A dor ensina a gemer e ensina mesmo!
Mas, não entendam mal, eu não era nenhuma “dondoquinha”.  O que aconteceu foi que, até ali, eu me dedicava mais às lides do intelecto, da cultura e do lazer, rsrs. 

    No Chile, Renato estudava Economia na Universidad de Concepción e trabalhava na Petroquímica Chilena e eu estudava Arquitetura na Universidad Técnica Del Estado e Sociologia na Universidad de Concepción. 
Quando cheguei em Concepción havia poucos brasileiros: Percy e Célia, Jun, Jaime, Bené, Lucio, Fred, Renato e eu. Jaime já estava casado com a chilena Mitzi; Fred casou em seguida com a também chilena Carmen; Percy e Célia, um pouco mais velhos do que nós, já tinham filhos. Os demais, jovens como nós, mas solteiros, viviam na moradia estudantil, dentro do campus da Universidad de Concepción. Um tempo depois, Jun casou com a argentina Marta e Bené com a chilena Tereza.  Esta era a nossa família.
Mais brasileiros foram chegando e se agregando à esta pequena “Colônia”. Estávamos integrados à vida do Chile e à luta dos chilenos. Eu me sentia comprometida com o Chile e acredito que a maioria de nós se sentia também!

Apesar da dor do golpe, foi um período de muita alegria, de aprender muito, de viver muito, de sentir muito, de conhecer muito e, principalmente, de estar fazendo parte!


Casamento do Fred, da esquerda para a direita: Bêne, Jun, Jaime, Marta, Renato e eu, Fred e Carmen, Percy e Célia/ 1971

Golpe
Na manhã do dia 11 de setembro eu estava sozinha em casa. Renato havia saído cedo para o trabalho. Eu, como sempre, estava com o rádio ligado e assim pude escutar o discurso de despedida de Allende, seguido por marchas militares e pelo comunicado das forças armadas e carabineiros declarando que uma junta militar havia tomado o poder. Nosso sonho de um mundo novo começava a desmoronar.
Que desespero! E o que fazer?
Minha primeira providência foi procurar Tomás, um amigo brasileiro que vivia nas proximidades e que não tinha rádio. Precisava avisá-lo do golpe e precisava, também, do seu apoio. Não sabia a que horas Renato chegaria em casa e se teria problemas na Petroquímica que, como todas as estatais, era um reduto da esquerda.
No rádio, com todas as estações em cadeia nacional, continuavam os comunicados da junta golpista e as marchas militares. Eu estava com muito medo!
Num dos comunicados foi instituído o “toque de queda” (toque de recolher), o que significava que durante sua vigência ninguém poderia aproximar-se das janelas e sair de casa entre às 18 hs e às 6 hs sem um salvo conduto dado pelos milicos. 



Nosso apartamento era o primeiro à direita/ 
foto feita no verão de 2004.

Apesar de morarmos em um bairro de trabalhadores, no nosso edifício havia gente contrária ao governo. “Falta todo!”, reclamavam sem se dar conta de que esta “falta” era uma poderosa arma da oposição contra o governo da Unidad Popular. Mas, infelizmente, o que bradavam era a mais pura verdade! Era quase impossível encontrar alguns produtos fundamentais no dia a dia, como por exemplo: papel higiênico, guardanapos, fósforos, isqueiros, farinha, açúcar. As gôndolas dos supermercados estavam ficando cada vez mais vazias... Só que, em volta do mercado públicos havia de tudo com preços altíssimos para quem quisesse e pudesse comprar no mercado negro!
Quando voltei da casa do Tomás, os vizinhos do apartamento ao lado me convidaram para brindar com champanhe o fim do governo Allende e eu tive que brindar! Foi doloroso, mas não havia alternativa naquele momento. Eram meus amigos, conversávamos, trocávamos receitas, mas eu sabia o que pensavam. E por mais estranho que possa parecer, foram estas mesmas pessoas que me ajudaram a tirar de casa muitos dos nossos livros (em um dos comunicados, a junta militar proibiu qualquer tipo de publicação de esquerda).  Naquele mesmo dia, a vizinha e eu, de braços dados como quem volta das compras, fomos até um terreno baldio e, procurando não sermos notadas, deixamos lá minhas sacolas cheias de livros. Seu genro, militante do grupo fascista “Pátria e Libertad”, no dia seguinte, levou para o seu sitio, em sua caminhonete,  mais sacolas com publicações. Ele mesmo se ofereceu dizendo sabia que Renato estudava economia e que por isto deveríamos ter muitos dos livros que passaram a ser proibidos.

        Renato, por sorte, chegou em casa à tarde, são e salvo. 
À noitinha, antes do toque de recolher, recebemos em nossa casa dois amigos: Vando, um pernambucano, e sua companheira chilena Ana Rosa, dirigente da Juventude Comunista de Concepción, uma figura pública. A Universidad de Concepción tinha sido invadida pelos militares e como nossos amigos viviam na moradia estudantil não tinham onde dormir. E na manhã do dia 12, ao saírem, foram vistos pela nossa diarista que, dias mais tarde, nos chantageou. Fomos obrigados a pagar pelo seu silêncio em dólares. Mas, bem feito pra ela que saiu perdendo! Como já sabíamos que teríamos que deixar o Chile,  pretendíamos presenteá-la com todos os nossos móveis, nossos utensílios de cozinha e com a nossa geladeira (artigo raro no nosso bairro, presente dos meus pais, assim como o pagamento dela). 

Ainda nesta mesma manhã, um dia depois do golpe, um comunicado da junta militar determinou que todos os estrangeiros deveriam se apresentar na Delegacia de Estrangeiros. Em Concepción havia poucos brasileiros, menos de trinta, todos apoiadores do governo de Allende e ilhados em uma cidade sem embaixadas. Portanto, não havia alternativa, teríamos que nos apresentar.
Organizamos uma reunião com os brasileiros que pudemos localizar e foi decidido que Renato e eu seríamos os primeiros a nos apresentar. O motivo era simples: éramos os únicos que possuíam o passaporte brasileiro válido e o visto chileno de permanência em dia. Depois, estabelecemos uma ordem para a apresentação dos demais. Caso não voltássemos, alguns não se apresentariam porque, certamente, seriam presos por terem saído clandestinamente do Brasil e por estarem visados no Brasil.

Vesti minha melhor roupa, calcei meus sapatos novos e fomos nos apresentar. Ao chegarmos lá  demorei a entender que deveria obedecer à ordem de "mãos ao alto". Depois disto, houve um incidente tragicômico: ao revistar a bolsa que eu levava o policial encontrou o meu desodorante comprado no Brasil (e não me perguntem porque ele estava lá!). Era de um  desodorante em bastão que ainda não havia no Chile: a embalagem era um cilindro de plástico preto que, com o uso, teve as letras do rótulo apagadas. Pois não é que o policial achou que era uma bomba?! Foi difícil, mas conseguimos que ele abrisse. Por sorte, não explodiu, rsrs.
Nos deixaram em uma sala cheia de estrangeiros, onde não havia cadeiras para todos. Lá pelas tantas, os europeus foram liberados e nós ficamos. Ninguém nos dizia que estávamos presos, mas não podíamos ir embora.
No final da tarde, ainda sem nenhuma explicação (e sem comer desde o café da manhã), embarcamos em um ônibus dos carabineiros e fomos levados para o Estádio Regional de Concepción. Ficamos em um dos vestiários, embaixo das arquibancadas de concreto, um lugar horrível, úmido, frio e sem janelas. A partir deste momento estávamos sob a guarda do exercito chileno e não mais da polícia civil. Dava para perceber que tudo estava muito bem planejado. Ninguém falava conosco, não nos explicavam nada, já era noite e estávamos com muita fome. 
Apesar de todo o medo, um fato me tranquilizava: ali conosco estava um paraguaio, meu colega de aula, que era sobrinho de Stroessner, o então ditador do Paraguai.

        Ainda sem termos sido identificados, de novo em um ônibus dos carabineiros, fomos transferidos para a Base Naval de Talcahuano, a 15 km de Concepción. Para meu desespero, meu colega não foi conosco, foi liberado... 
A partir daquele momento, estávamos sob a guarda da marinha chilena e o medo aumentava!
Chegando à base, ainda no continente, fomos levados para o ginásio de esportes onde já havia outros presos, mas nenhuma mulher. Os homens ficavam deitados no chão, no centro do estádio, de barriga para baixo, com as pernas abertas e com a cabeça sobre as mãos e nós sentadas nas arquibancadas, bem separados umas das outras. Éramos somente nove, enquanto que os homens já eram algumas dezenas. Lá encontramos muitos amigos e colegas chilenos.
Antes do golpe, já tínhamos ouvido falar dos cossacos, como era chamada a tropa de elite da marinha. Em agosto, antes do golpe, havia surgido uma denúncia de que marinheiros leais ao governo haviam sido presos e torturados por eles na base naval onde estávamos. Eram eles que vigiavam as mulheres, sentados próximos de nós nas arquibancadas. Foi quando aconteceu um fato surpreendente, quase inacreditável: os temidos cossacos, mesmo sem saber quem éramos nos passavam sanduiches às escondidas.
No final da noite fomos identificados e apesar de não nos darem nenhuma informação, agora tínhamos certeza de que estávamos presos! 


Mais postagem sobre o Chile:





5.5.13

A magia de Escher



Dia 12 de abril, Xico e eu fomos ao Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, para visitar a exposição do artista gráfico holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972).
Fantástica! Curtam como nós curtimos, é só clicar na foto acima.

4.3.13

11.2.13

O Carnaval de Sampaio na Revista do Globo

Meu pai foi um dos primeiros cartunistas profissionais do Rio Grande do Sul. 
Começou nos anos 40, na Revista do Globo, com os desenhos de multidão. 
Cada semana, escolhia um tema e a "graça" era encontrar o homenzinho fazendo xixi, sempre presente (40 anos antes do "Onde está Wally"!). 
Mas, procurando bem, também se encontra o seu auto-retrato e eu, de franjinha, sempre ali por perto. 
Então, divirtam-se.
p.s.- Sampaio tem hoje 85 anos mas, infelizmente, não desenha mais. 
O também cartunista SamPaulo, já falecido, era seu irmão mais moço. 

Seu auto-retrato, feito em 1953, para facilitar a busca por ele nos desenhos.









26.1.13

POLITIZAÇÃO E DESBUNDE


"Assim se projetou uma geração. A Faculdade de Arquitetura da UFRGS refletiu a rebeldia dos anos 1960. Por lá passaram diversos personagens e personalidades."
Do Jornalista Paulo César Teixeira, autor de "Esquina Maldita" 
(Editora Libretos, 2012).
Publicado no Caderno de Cultura da Zero Hora de hoje.

Euzinha em 1969

Uma sexagenária que acompanhou a trajetória de sua geração, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS foi uma espécie de point de descolados que sintonizou Porto Alegre com os movimentos de vanguarda política, estética e comportamental que se alastravam pelo mundo nos anos 1960.

A escola que completou seis décadas de vida em junho do ano passado era um “centro convulsionado de inquietações”, como sugere o ex-aluno Jorge Polydoro, atual presidente do Instituto e revista Amanhã. “Era a faculdade da moda”, acrescenta Luís Carlos Macchi Silva, o Lico, que ingressou como estudante em 1965 e hoje é professor da instituição. Em nível nacional, a arquitetura também estava na moda. O país vivia a euforia causada pela inauguração de Brasília, em 1960, período no qual a obra de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer ganhara popularidade. Artistas já famosos ou em vias de se consagrarem, como Tom Jobim e Chico Buarque de Hollanda, por exemplo, em algum momento de suas trajetórias foram estudantes de Arquitetura. Em termos locais, a vinculação histórica da faculdade da UFRGS com o Instituto de Belas Artes (do qual se originou) fazia com que o curso naturalmente atraísse um contingente de pessoas ligadas à arte e à cultura.

Não é de admirar que, além de futuros arquitetos, a escola aglutinasse personalidades que depois se destacariam em outras áreas, como o escritor Tabajara Ruas e os cartunistas Edgar Vasques e Santiago, além dos músicos Wanderlei Falkenberg e Cláudio Levitan, nomes ligados ao movimento da Tropicália gaúcha. Por lá também passou o advogado e jornalista José Antônio Pinheiro Machado (o Anonymus Gourmet), junto com o irmão Ivan, que anos depois fundaria a L&PM Editores com o também colega de faculdade Paulo de Almeida Lima. Sem contar o fotógrafo Luiz Carlos Felizardo e o cenógrafo e dono do Bar Ocidente, Fiapo Barth, além do empresário Telmo Magadan, que ocupou cargos públicos como a presidência da EBTU (Empresa Brasileira de Transportes Urbanos) nos anos 1980.

Edgar Vasques marcara um X em Arquitetura na inscrição do vestibular por considerá-la “a opção mais parecida com desenho”. Além disso, “os amigos, as namoradas e todo o debate político e ideológico estava concentrado lá”, justifica. No período da faculdade, surgiu o Rango, personagem maltrapilho e esfomeado criado pelo cartunista como antítese da imagem do país de bonança e fartura alardeada pela propaganda do regime militar, que governava o país com mão de ferro. Rango fez sua primeira aparição em 1970, nas páginas da revista Grillus, editada pelo Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura (Dafa), antes de ser lançado em livro, em agosto de 1974, pela L&PM.

“Ora, professor, nós queremos a revolução!”

Naquele período, a UFRGS vivia uma fase de instabilidade, que culminou, em 1969, com uma segunda leva de cassações que afastou 20 professores (a primeira ocorrera em 1964, logo após o golpe militar, com 17 docentes sendo aposentados, exonerados ou dispensados). A Faculdade de Arquitetura foi a mais atingida pelo expurgo. “A verdade é que os melhores professores foram cassados. Não apenas os que eram de esquerda, também os mais inteligentes e abertos às novas ideias”, assinala Cláudio Levitan. Em meio à turbulência, os estudantes iniciaram uma campanha com o sugestivo título de “Nosso ensino é uma farsa”, que resultou na organização de um seminário para reavaliar radicalmente o currículo e a metodologia de ensino. A faculdade parou para repensar a si mesma.

O presidente do DAFA, durante a realização do seminário com dez dias de duração, era Newton Baggio, que depois ocuparia cargos na prefeitura de Porto Alegre como secretário de Planejamento, nos anos 1980, e de Gestão e Acompanhamento Estratégico no mandato do prefeito José Fortunati. “Muitas das propostas aprovadas no seminário foram adotadas pela direção da faculdade”, recorda ele. Entusiasmados, os alunos passaram a arriscar novas linguagens na apresentação dos trabalhos acadêmicos. Um deles escreveu laudas e laudas na máquina de escrever para depois picotá-las com uma tesoura na frente do professor. Outro construiu maquinetas de moer bonequinhos para explicar o fenômeno físico da compressão e, ao mesmo tempo, criticar uma sociedade que “moía o cérebro das pessoas”. “Tentávamos contorcer tudo do avesso só para ver até onde podíamos chegar. Depois, o professor que se virasse para dar a nota”, sublinha Vasques. Alguns docentes entravam no jogo, outros nem tanto. Um dos mais antigos perdeu a paciência: “Mas, afinal, o que vocês querem?”. Lá do fundo da sala, ouviu-se a voz de uma estudante: “Ora, professor, nós queremos fazer a revolução!”. Nem mais, nem menos.

O comportamento dos estudantes da Arquitetura sofria múltiplas interferências de um mundo que estava sendo posto de cabeça para baixo. Ao mesmo tempo em que se organizavam para combater a ditadura militar, os universitários se entregavam de corpo e alma à revolução de costumes que tomava conta do planeta. “Havia a busca de um caminho alternativo nos moldes do movimento hippie, que misturava drogas e festas. Casamento aberto, sexo grupal, vida em comunidade, tudo entrava na pauta”, lembra Levitan.

Neste caldeirão de influências, havia os adeptos do antropólogo estruturalista francês Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009) e os entusiastas do filósofo alemão Herbert Marcuse (1898 – 1979), autor de Eros e Civilização, que tentava unir as teorias de Freud e Marx. Outros se encantavam com o teórico canadense Marshall McLuhan (1911 – 1980), criador da expressão “aldeia global” e de frases que entraram para o vocabulário moderninho da época, como “O meio é a mensagem”. Sem falar nos fãs do filósofo, linguista e escritor italiano Umberto Eco, que chegou a realizar uma palestra no Dafa antes de ganhar fama.

Na corrida eleitoral para a direção do centro acadêmico, as esquerdas se dividiam entre o Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, e o Partido Operário Comunista, o POC. Ligado ao PCB até por questões familiares, José Antônio elegeu-se presidente do centro acadêmico em 1969 (o pai, Antônio Pinheiro Machado Netto, foi constituinte pela sigla em 1947). Em outubro do ano anterior, tinha participado como representante da faculdade do 30º Congresso da UNE, em Ibiúna (SP), que acabou com a prisão de centenas de estudantes. O Anonymus Gourmet amargou dois meses de calabouço. Quando voltou, havia perdido a data das provas e teria sido reprovado não fosse o gesto de coragem e solidariedade de professores que decidiram aprová-lo, mesmo sem a realização dos exames. “Entre eles, estavam o Flávio Soares e o Ari Canarin”, registra o jornalista, até hoje agradecido.

Em outra trincheira, estavam os defensores da contracultura, movimento underground que se alimentava das ações e propostas dos alunos do campus de Berkeley da Universidade da Califórnia, um dos principais palcos do movimento pacifista dos Estados Unidos nos anos 1960. Carlos Eduardo Weyrauch, o Mutuca, pioneiro do rock gaúcho, salienta que, ao contrário do que diziam os militantes partidários, o pessoal da contracultura estava longe de ser alienado. “Havia um senso crítico apurado com a valorização do psicodelismo e do rock como postura política e comportamental”.

A tribo da contracultura concorreu à sucessão de José Antônio com Mutuca na cabeça da chapa. A plataforma eleitoral incluía bordões do apresentador de televisão Chacrinha – “Eu não vim para explicar, eu vim para confundir” –, além de propostas desconcertantes como “Faremos o Mirante do Óbvio no telhado da faculdade”. Mutuca perdeu a eleição por minguados 17 votos para o grupo de Dirceu José Carneiro, que depois seguiu carreira política como parlamentar e prefeito de Lages (SC), pelo PMDB. “Quando terminou a contagem dos votos, fui ao encontro do Dirceu e sapequei-lhe um beijo no rosto, para espanto e incredulidade dos presentes”, relembra o músico.

Divergências ideológicas à parte, na hora da fuzarca, todas as alas se divertiam juntas. “O sujeito de esquerda namorava a menina hippie e vice-versa”, sintetiza Edgar Vasques. Até porque as dezenas de colchões espalhados pelo chão do Dafa contribuíam para desfazer eventuais discordâncias políticas. Nas paredes da sala, panos pendurados em cores quentes, como vermelho e roxo (instalação do artista plástico Flávio Pons) ajudavam a criar um clima de aconchego.

Para se ter ideia da importância da Faculdade de Arquitetura da UFRGS na vida cultural de Porto Alegre nos anos 1960, basta citar que o Dafa foi responsável pela produção do Arqui-Samba, show musical que trouxe à capital gaúcha – entre 1965 e 1969 – nomes como Baden Powell, Vinicius de Moraes, Silvinha Telles, Tamba Trio e Chico Buarque. Ainda estudante de Arquitetura da USP, Chico se apresentou no cine Cacique, em outubro de 1966, uma semana após ganhar o 2º Festival da Música Popular, da TV Record, com A Banda.

Algum tempo antes, Antonio Aiello (membro da ala cultural do Dafa) havia negociado o cachê com o artista nos bastidores do programa Fino da Bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues, em São Paulo. “Tínhamos firmado apenas um acordo verbal. Mesmo sabendo que poderia exigir três ou quatro vezes mais (após ganhar o festival), ele manteve sua palavra e não nos impôs nenhuma condição suplementar. Caráter é um dos componentes desta figura maravilhosa”, escreveu Aniello em Arquitetura UFRGS – 50 anos de Histórias (Editora da UFRGS, 2002), livro organizado por Flavia Licth e Salma Cafruni em comemoração ao cinquentenário da faculdade. A última edição do Arqui-Samba, em 1969, apresentou os tropicalistas Gal Costa e os Mutantes. “Depois do show, levamos os meninos dos Mutantes para jantar no Barranco. Eu me sentei ao lado da Rita Lee, uma bela moça que devia ter seus 18 anos”, recorda Jorge Polydoro.

Tropicalismo e golpe de cravelha na cabeça
O Dafa promoveu ainda o Festival Universitário da Música Popular Brasileira, no Salão de Atos da UFRGS. Na época, havia um fosso em frente ao palco, onde se acomodavam os músicos da Ospa para acompanhar os concorrentes. O festival contou com a participação de atrações nacionais em começo de carreira, como Danilo Caymmi, Zé Rodrix e Beth Carvalho. A primeira edição, em 1968, até que foi bem comportada. No ano seguinte, inspirados no tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, alguns dos participantes resolveram “romper as estruturas” , como relata o crítico musical Juarez Fonseca em Porto Alegre, Anos 60: uma Década Musical Quase Esquecida, artigo publicado no livro Pensando Porto Alegre (Instituto Hominus, 2012).

O grupo O Succo, liderado por Mutuca, entrou no palco com o baixista Flávio Dias, o Chaminé, vestido de ceroulas e com um penico na cabeça. A irreverência foi interpretada como falta de respeito por alguns colegas, como o pianista e arranjador Geraldo Flach (falecido em 2011). A discussão esquentou nos bastidores, e Renato Português, que fazia parte de O Succo, acertou a cravelha de seu contrabaixo elétrico na cabeça de Flach. “Tivemos que levar o Geraldo até o HPS e ainda passar na delegacia de polícia para registrar a ocorrência. O que livrou o Português da prisão foi o fato de o delegado de plantão ser o Luiz Matias Flach (por coincidência, irmão de Geraldo), que achava que essa gente da música era toda meio doida mesmo...”, conta Polydoro, que exercia a função de contrarregra. Aliás, a principal dificuldade de Polydoro para desempenhar suas atribuições era arrebanhar os músicos, que insistiam em bebericar uns drinques no boteco da esquina. “Havia horário a cumprir porque o festival estava sendo transmitido ao vivo (em 1968, pela TV Piratini, e em 1969, pela TV Gaúcha, hoje RBS TV). Era um stress medonho, porque chegavam sempre em cima da hora.”

Após os incidentes com Flach, O Succo provocou mais uma estripulia. Uma das surpresas preparadas seria espalhar talco no palco. “Daí que, empolgado pela música e ainda alterado pela briga, sem mais nem menos, Português chutou o pacote (de talco industrial) na direção da orquestra postada no fosso em frente – o que, além de sujar os ternos pretos dos músicos, acabou com o som dos violinos”, registra Juarez Fonseca. Infelizmente, não há registro em vídeo dos festivais. “Os rolos de videotape que não queimaram foram danificados pela ação das mangueiras dos bombeiros para apagar incêndios que atingiram os canais de televisão”, explica Luís Carlos Silva, o Lico, um dos organizadores dos shows. Assim, fotos publicadas em jornais da época constituem as únicas imagens disponíveis. Bem que ele tentou reunir a turma para um novo espetáculo em 2012. Uma data chegou a ser reservada no Salão de Atos para a atividade de extensão universitária, que reuniria Danilo Caymmi, Raul Ellwanger, Wanderlei Falkenberg e Beth Carvalho, mas faltou patrocínio. “Um dia sai”, suspira Lico.

Não bastasse a programação musical, a Arquitetura atraía a juventude também pelo “festerê”, como eram chamadas as reuniões dançantes promovidas no primeiro andar do prédio. Outra área privilegiada era o anfiteatro com 200 lugares no piso térreo, onde ocorriam espetáculos de música e teatro. Sem falar nas exposições de artistas plásticos, com charges, desenhos, caricaturas e quadrinhos. Mas, sem dúvida, o evento mais cult da faculdade era o Pontinho, realizado nas noites de sextas-feiras no bar da faculdade. “Não sei por que, o contrato do ecônomo obrigava que ele cedesse o espaço para o Dafa, uma vez por semana. Convidávamos o pessoal da música para dar canja lá”, relata Lico. No Pontinho, palco de novas bandas, apresentou-se pela primeira vez em público o Utopia, trio formado por Bebeto Alves e os irmãos Ronald e Ricardo Frota. “A nossa geração aprontou bastante. Hoje, fica difícil bancarmos os velhinhos bem comportados”, brinca Maria Lucia Sampaio, que interrompeu a faculdade em 1971, quando precisou se exilar no Chile.

Boa parte dos estudantes da Arquitetura viveu com intensidade a experiência universitária, mas não saiu com o diploma da faculdade. É o caso também de Jorge Polydoro e do Anonymus Gourmet. Em 1971, após uma longa noite de estudos para a prova da disciplina de Cálculo, na casa de José Antônio, na Rua Santa Terezinha, os dois jovens estudantes tomaram uma decisão drástica. “Entramos de cabeça nos estudos, mas, quando clareou o dia, chegamos à conclusão de que não dávamos para aquilo. Combinamos, então, que entregaríamos a prova em branco e abandonaríamos a faculdade.” E assim o fizeram.


Pouco importa. Afinal, como escreveu Ivan Pinheiro Machado no livro em homenagem ao cinquentenário da faculdade, a escola da UFRGS representou nos anos 1960 uma “espécie de ilha da fantasia” em uma realidade marcada pelo obscurantismo. “A faculdade era um imenso bar, naquilo que os bares têm de filosófico, lúdico, quixotesco. Muitos de nós devemos à faculdade não uma profissão, mas uma visão de mundo. Um tempo que foi curto, mas que nos deu pistas de que a vida poderia ser diferente, criativa, justa, divertida.”





20.1.13