"Assim se
projetou uma geração. A
Faculdade de Arquitetura da UFRGS refletiu a rebeldia dos anos 1960. Por lá
passaram diversos personagens e personalidades."
Do Jornalista Paulo César Teixeira, autor de "Esquina Maldita"
(Editora Libretos, 2012).
(Editora Libretos, 2012).
Publicado no Caderno de Cultura da Zero Hora de hoje.
Euzinha em 1969
Uma sexagenária que acompanhou a
trajetória de sua geração, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS foi
uma espécie de point de descolados que sintonizou Porto Alegre com os
movimentos de vanguarda política, estética e comportamental que se alastravam
pelo mundo nos anos 1960.
A escola que completou seis
décadas de vida em junho do ano passado era um “centro convulsionado de
inquietações”, como sugere o ex-aluno Jorge Polydoro, atual presidente do
Instituto e revista Amanhã. “Era a faculdade da moda”, acrescenta Luís Carlos
Macchi Silva, o Lico, que ingressou como estudante em 1965 e hoje é professor
da instituição. Em nível nacional, a arquitetura também estava na moda. O país
vivia a euforia causada pela inauguração de Brasília, em 1960, período no qual
a obra de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer ganhara popularidade. Artistas já
famosos ou em vias de se consagrarem, como Tom Jobim e Chico Buarque de
Hollanda, por exemplo, em algum momento de suas trajetórias foram estudantes de
Arquitetura. Em termos locais, a vinculação histórica da faculdade da UFRGS com
o Instituto de Belas Artes (do qual se originou) fazia com que o curso
naturalmente atraísse um contingente de pessoas ligadas à arte e à cultura.
Não é de admirar que, além de
futuros arquitetos, a escola aglutinasse personalidades que depois se
destacariam em outras áreas, como o escritor Tabajara Ruas e os cartunistas
Edgar Vasques e Santiago, além dos músicos Wanderlei Falkenberg e Cláudio
Levitan, nomes ligados ao movimento da Tropicália gaúcha. Por lá também passou
o advogado e jornalista José Antônio Pinheiro Machado (o Anonymus Gourmet),
junto com o irmão Ivan, que anos depois fundaria a L&PM Editores com o
também colega de faculdade Paulo de Almeida Lima. Sem contar o fotógrafo Luiz
Carlos Felizardo e o cenógrafo e dono do Bar Ocidente, Fiapo Barth, além do
empresário Telmo Magadan, que ocupou cargos públicos como a presidência da EBTU
(Empresa Brasileira de Transportes Urbanos) nos anos 1980.
Edgar Vasques marcara um X em
Arquitetura na inscrição do vestibular por considerá-la “a opção mais parecida
com desenho”. Além disso, “os amigos, as namoradas e todo o debate político e
ideológico estava concentrado lá”, justifica. No período da faculdade, surgiu o
Rango, personagem maltrapilho e esfomeado criado pelo cartunista como antítese
da imagem do país de bonança e fartura alardeada pela propaganda do regime
militar, que governava o país com mão de ferro. Rango fez sua primeira aparição
em 1970, nas páginas da revista Grillus, editada pelo Diretório Acadêmico da
Faculdade de Arquitetura (Dafa), antes de ser lançado em livro, em agosto de
1974, pela L&PM.
“Ora, professor, nós queremos a
revolução!”
Naquele período, a UFRGS vivia
uma fase de instabilidade, que culminou, em 1969, com uma segunda leva de
cassações que afastou 20 professores (a primeira ocorrera em 1964, logo após o
golpe militar, com 17 docentes sendo aposentados, exonerados ou dispensados). A
Faculdade de Arquitetura foi a mais atingida pelo expurgo. “A verdade é que os
melhores professores foram cassados. Não apenas os que eram de esquerda, também
os mais inteligentes e abertos às novas ideias”, assinala Cláudio Levitan. Em
meio à turbulência, os estudantes iniciaram uma campanha com o sugestivo título
de “Nosso ensino é uma farsa”, que resultou na organização de um seminário para
reavaliar radicalmente o currículo e a metodologia de ensino. A faculdade parou
para repensar a si mesma.
O presidente do DAFA, durante a
realização do seminário com dez dias de duração, era Newton Baggio, que depois
ocuparia cargos na prefeitura de Porto Alegre como secretário de Planejamento,
nos anos 1980, e de Gestão e Acompanhamento Estratégico no mandato do prefeito
José Fortunati. “Muitas das propostas aprovadas no seminário foram adotadas
pela direção da faculdade”, recorda ele. Entusiasmados, os alunos passaram a
arriscar novas linguagens na apresentação dos trabalhos acadêmicos. Um deles
escreveu laudas e laudas na máquina de escrever para depois picotá-las com uma
tesoura na frente do professor. Outro construiu maquinetas de moer bonequinhos
para explicar o fenômeno físico da compressão e, ao mesmo tempo, criticar uma
sociedade que “moía o cérebro das pessoas”. “Tentávamos contorcer tudo do
avesso só para ver até onde podíamos chegar. Depois, o professor que se virasse
para dar a nota”, sublinha Vasques. Alguns docentes entravam no jogo, outros
nem tanto. Um dos mais antigos perdeu a paciência: “Mas, afinal, o que vocês
querem?”. Lá do fundo da sala, ouviu-se a voz de uma estudante: “Ora,
professor, nós queremos fazer a revolução!”. Nem mais, nem menos.
O comportamento dos estudantes da
Arquitetura sofria múltiplas interferências de um mundo que estava sendo posto
de cabeça para baixo. Ao mesmo tempo em que se organizavam para combater a
ditadura militar, os universitários se entregavam de corpo e alma à revolução
de costumes que tomava conta do planeta. “Havia a busca de um caminho
alternativo nos moldes do movimento hippie, que misturava drogas e festas.
Casamento aberto, sexo grupal, vida em comunidade, tudo entrava na pauta”,
lembra Levitan.
Neste caldeirão de influências,
havia os adeptos do antropólogo estruturalista francês Claude Lévi-Strauss
(1908 – 2009) e os entusiastas do filósofo alemão Herbert Marcuse (1898 –
1979), autor de Eros e Civilização, que tentava unir as teorias de Freud e
Marx. Outros se encantavam com o teórico canadense Marshall McLuhan (1911 –
1980), criador da expressão “aldeia global” e de frases que entraram para o
vocabulário moderninho da época, como “O meio é a mensagem”. Sem falar nos fãs
do filósofo, linguista e escritor italiano Umberto Eco, que chegou a realizar
uma palestra no Dafa antes de ganhar fama.
Na corrida eleitoral para a
direção do centro acadêmico, as esquerdas se dividiam entre o Partido Comunista
Brasileiro, o Partidão, e o Partido Operário Comunista, o POC. Ligado ao PCB
até por questões familiares, José Antônio elegeu-se presidente do centro acadêmico
em 1969 (o pai, Antônio Pinheiro Machado Netto, foi constituinte pela sigla em
1947). Em outubro do ano anterior, tinha participado como representante da
faculdade do 30º Congresso da UNE, em Ibiúna (SP), que acabou com a prisão de
centenas de estudantes. O Anonymus Gourmet amargou dois meses de calabouço.
Quando voltou, havia perdido a data das provas e teria sido reprovado não fosse
o gesto de coragem e solidariedade de professores que decidiram aprová-lo,
mesmo sem a realização dos exames. “Entre eles, estavam o Flávio Soares e o Ari
Canarin”, registra o jornalista, até hoje agradecido.
Em outra trincheira, estavam os
defensores da contracultura, movimento underground que se alimentava das ações
e propostas dos alunos do campus de Berkeley da Universidade da Califórnia, um
dos principais palcos do movimento pacifista dos Estados Unidos nos anos 1960.
Carlos Eduardo Weyrauch, o Mutuca, pioneiro do rock gaúcho, salienta que, ao
contrário do que diziam os militantes partidários, o pessoal da contracultura
estava longe de ser alienado. “Havia um senso crítico apurado com a valorização
do psicodelismo e do rock como postura política e comportamental”.
A tribo da contracultura
concorreu à sucessão de José Antônio com Mutuca na cabeça da chapa. A plataforma
eleitoral incluía bordões do apresentador de televisão Chacrinha – “Eu não vim
para explicar, eu vim para confundir” –, além de propostas desconcertantes como
“Faremos o Mirante do Óbvio no telhado da faculdade”. Mutuca perdeu a eleição
por minguados 17 votos para o grupo de Dirceu José Carneiro, que depois seguiu
carreira política como parlamentar e prefeito de Lages (SC), pelo PMDB. “Quando
terminou a contagem dos votos, fui ao encontro do Dirceu e sapequei-lhe um
beijo no rosto, para espanto e incredulidade dos presentes”, relembra o músico.
Divergências ideológicas à parte,
na hora da fuzarca, todas as alas se divertiam juntas. “O sujeito de esquerda
namorava a menina hippie e vice-versa”, sintetiza Edgar Vasques. Até porque as
dezenas de colchões espalhados pelo chão do Dafa contribuíam para desfazer
eventuais discordâncias políticas. Nas paredes da sala, panos pendurados em
cores quentes, como vermelho e roxo (instalação do artista plástico Flávio
Pons) ajudavam a criar um clima de aconchego.
Para se ter ideia da importância
da Faculdade de Arquitetura da UFRGS na vida cultural de Porto Alegre nos anos
1960, basta citar que o Dafa foi responsável pela produção do Arqui-Samba, show
musical que trouxe à capital gaúcha – entre 1965 e 1969 – nomes como Baden
Powell, Vinicius de Moraes, Silvinha Telles, Tamba Trio e Chico Buarque. Ainda
estudante de Arquitetura da USP, Chico se apresentou no cine Cacique, em
outubro de 1966, uma semana após ganhar o 2º Festival da Música Popular, da TV
Record, com A Banda.
Algum tempo antes, Antonio Aiello
(membro da ala cultural do Dafa) havia negociado o cachê com o artista nos
bastidores do programa Fino da Bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues, em São
Paulo. “Tínhamos firmado apenas um acordo verbal. Mesmo sabendo que poderia
exigir três ou quatro vezes mais (após ganhar o festival), ele manteve sua
palavra e não nos impôs nenhuma condição suplementar. Caráter é um dos
componentes desta figura maravilhosa”, escreveu Aniello em Arquitetura UFRGS –
50 anos de Histórias (Editora da UFRGS, 2002), livro organizado por Flavia
Licth e Salma Cafruni em comemoração ao cinquentenário da faculdade. A última
edição do Arqui-Samba, em 1969, apresentou os tropicalistas Gal Costa e os
Mutantes. “Depois do show, levamos os meninos dos Mutantes para jantar no
Barranco. Eu me sentei ao lado da Rita Lee, uma bela moça que devia ter seus 18
anos”, recorda Jorge Polydoro.
Tropicalismo e golpe de cravelha
na cabeça
O Dafa promoveu ainda o Festival
Universitário da Música Popular Brasileira, no Salão de Atos da UFRGS. Na
época, havia um fosso em frente ao palco, onde se acomodavam os músicos da Ospa
para acompanhar os concorrentes. O festival contou com a participação de
atrações nacionais em começo de carreira, como Danilo Caymmi, Zé Rodrix e Beth
Carvalho. A primeira edição, em 1968, até que foi bem comportada. No ano
seguinte, inspirados no tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, alguns
dos participantes resolveram “romper as estruturas” , como relata o crítico
musical Juarez Fonseca em Porto Alegre, Anos 60: uma Década Musical Quase
Esquecida, artigo publicado no livro Pensando Porto Alegre (Instituto Hominus,
2012).
O grupo O Succo, liderado por
Mutuca, entrou no palco com o baixista Flávio Dias, o Chaminé, vestido de ceroulas
e com um penico na cabeça. A irreverência foi interpretada como falta de
respeito por alguns colegas, como o pianista e arranjador Geraldo Flach
(falecido em 2011). A discussão esquentou nos bastidores, e Renato Português,
que fazia parte de O Succo, acertou a cravelha de seu contrabaixo elétrico na
cabeça de Flach. “Tivemos que levar o Geraldo até o HPS e ainda passar na
delegacia de polícia para registrar a ocorrência. O que livrou o Português da
prisão foi o fato de o delegado de plantão ser o Luiz Matias Flach (por
coincidência, irmão de Geraldo), que achava que essa gente da música era toda
meio doida mesmo...”, conta Polydoro, que exercia a função de contrarregra.
Aliás, a principal dificuldade de Polydoro para desempenhar suas atribuições
era arrebanhar os músicos, que insistiam em bebericar uns drinques no boteco da
esquina. “Havia horário a cumprir porque o festival estava sendo transmitido ao
vivo (em 1968, pela TV Piratini, e em 1969, pela TV Gaúcha, hoje RBS TV). Era
um stress medonho, porque chegavam sempre em cima da hora.”
Após os incidentes com Flach, O
Succo provocou mais uma estripulia. Uma das surpresas preparadas seria espalhar
talco no palco. “Daí que, empolgado pela música e ainda alterado pela briga,
sem mais nem menos, Português chutou o pacote (de talco industrial) na direção
da orquestra postada no fosso em frente – o que, além de sujar os ternos pretos
dos músicos, acabou com o som dos violinos”, registra Juarez Fonseca.
Infelizmente, não há registro em vídeo dos festivais. “Os rolos de videotape
que não queimaram foram danificados pela ação das mangueiras dos bombeiros para
apagar incêndios que atingiram os canais de televisão”, explica Luís Carlos
Silva, o Lico, um dos organizadores dos shows. Assim, fotos publicadas em jornais
da época constituem as únicas imagens disponíveis. Bem que ele tentou reunir a
turma para um novo espetáculo em 2012. Uma data chegou a ser reservada no Salão
de Atos para a atividade de extensão universitária, que reuniria Danilo Caymmi,
Raul Ellwanger, Wanderlei Falkenberg e Beth Carvalho, mas faltou patrocínio.
“Um dia sai”, suspira Lico.
Não bastasse a programação
musical, a Arquitetura atraía a juventude também pelo “festerê”, como eram
chamadas as reuniões dançantes promovidas no primeiro andar do prédio. Outra
área privilegiada era o anfiteatro com 200 lugares no piso térreo, onde
ocorriam espetáculos de música e teatro. Sem falar nas exposições de artistas
plásticos, com charges, desenhos, caricaturas e quadrinhos. Mas, sem dúvida, o
evento mais cult da faculdade era o Pontinho, realizado nas noites de
sextas-feiras no bar da faculdade. “Não sei por que, o contrato do ecônomo
obrigava que ele cedesse o espaço para o Dafa, uma vez por semana. Convidávamos
o pessoal da música para dar canja lá”, relata Lico. No Pontinho, palco de
novas bandas, apresentou-se pela primeira vez em público o Utopia, trio formado
por Bebeto Alves e os irmãos Ronald e Ricardo Frota. “A nossa geração aprontou
bastante. Hoje, fica difícil bancarmos os velhinhos bem comportados”, brinca
Maria Lucia Sampaio, que interrompeu a faculdade em 1971, quando precisou se
exilar no Chile.
Boa parte dos estudantes da
Arquitetura viveu com intensidade a experiência universitária, mas não saiu com
o diploma da faculdade. É o caso também de Jorge Polydoro e do Anonymus
Gourmet. Em 1971, após uma longa noite de estudos para a prova da disciplina de
Cálculo, na casa de José Antônio, na Rua Santa Terezinha, os dois jovens
estudantes tomaram uma decisão drástica. “Entramos de cabeça nos estudos, mas,
quando clareou o dia, chegamos à conclusão de que não dávamos para aquilo.
Combinamos, então, que entregaríamos a prova em branco e abandonaríamos a
faculdade.” E assim o fizeram.
Pouco importa. Afinal, como
escreveu Ivan Pinheiro Machado no livro em homenagem ao cinquentenário da
faculdade, a escola da UFRGS representou nos anos 1960 uma “espécie de ilha da
fantasia” em uma realidade marcada pelo obscurantismo. “A faculdade era um
imenso bar, naquilo que os bares têm de filosófico, lúdico, quixotesco. Muitos
de nós devemos à faculdade não uma profissão, mas uma visão de mundo. Um tempo
que foi curto, mas que nos deu pistas de que a vida poderia ser diferente,
criativa, justa, divertida.”
2 comentários:
Olá Maria Lúcia,
Me chamo Johnny Boaventura, moro em Caxias do Sul - RS, tenho 19 anos e sou muito interessado pela tropicália, ainda mais quando falamos de tropicália gaúcha! se você tiver algum material a mais sobre esse belo momento na história da arte brasileira, por favor compartilhe... a nova geração tem sede de conhecer as histórias por trás desse período lindo!
Ótima postagem!
Abraços
Johnny, obrigada! Meu e-mai é marialuciapsampaio@yahoo.com.br. Me passa o teu e te mando alguns link´s.
Postar um comentário