26.1.13

POLITIZAÇÃO E DESBUNDE


"Assim se projetou uma geração. A Faculdade de Arquitetura da UFRGS refletiu a rebeldia dos anos 1960. Por lá passaram diversos personagens e personalidades."
Do Jornalista Paulo César Teixeira, autor de "Esquina Maldita" 
(Editora Libretos, 2012).
Publicado no Caderno de Cultura da Zero Hora de hoje.

Euzinha em 1969

Uma sexagenária que acompanhou a trajetória de sua geração, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS foi uma espécie de point de descolados que sintonizou Porto Alegre com os movimentos de vanguarda política, estética e comportamental que se alastravam pelo mundo nos anos 1960.

A escola que completou seis décadas de vida em junho do ano passado era um “centro convulsionado de inquietações”, como sugere o ex-aluno Jorge Polydoro, atual presidente do Instituto e revista Amanhã. “Era a faculdade da moda”, acrescenta Luís Carlos Macchi Silva, o Lico, que ingressou como estudante em 1965 e hoje é professor da instituição. Em nível nacional, a arquitetura também estava na moda. O país vivia a euforia causada pela inauguração de Brasília, em 1960, período no qual a obra de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer ganhara popularidade. Artistas já famosos ou em vias de se consagrarem, como Tom Jobim e Chico Buarque de Hollanda, por exemplo, em algum momento de suas trajetórias foram estudantes de Arquitetura. Em termos locais, a vinculação histórica da faculdade da UFRGS com o Instituto de Belas Artes (do qual se originou) fazia com que o curso naturalmente atraísse um contingente de pessoas ligadas à arte e à cultura.

Não é de admirar que, além de futuros arquitetos, a escola aglutinasse personalidades que depois se destacariam em outras áreas, como o escritor Tabajara Ruas e os cartunistas Edgar Vasques e Santiago, além dos músicos Wanderlei Falkenberg e Cláudio Levitan, nomes ligados ao movimento da Tropicália gaúcha. Por lá também passou o advogado e jornalista José Antônio Pinheiro Machado (o Anonymus Gourmet), junto com o irmão Ivan, que anos depois fundaria a L&PM Editores com o também colega de faculdade Paulo de Almeida Lima. Sem contar o fotógrafo Luiz Carlos Felizardo e o cenógrafo e dono do Bar Ocidente, Fiapo Barth, além do empresário Telmo Magadan, que ocupou cargos públicos como a presidência da EBTU (Empresa Brasileira de Transportes Urbanos) nos anos 1980.

Edgar Vasques marcara um X em Arquitetura na inscrição do vestibular por considerá-la “a opção mais parecida com desenho”. Além disso, “os amigos, as namoradas e todo o debate político e ideológico estava concentrado lá”, justifica. No período da faculdade, surgiu o Rango, personagem maltrapilho e esfomeado criado pelo cartunista como antítese da imagem do país de bonança e fartura alardeada pela propaganda do regime militar, que governava o país com mão de ferro. Rango fez sua primeira aparição em 1970, nas páginas da revista Grillus, editada pelo Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura (Dafa), antes de ser lançado em livro, em agosto de 1974, pela L&PM.

“Ora, professor, nós queremos a revolução!”

Naquele período, a UFRGS vivia uma fase de instabilidade, que culminou, em 1969, com uma segunda leva de cassações que afastou 20 professores (a primeira ocorrera em 1964, logo após o golpe militar, com 17 docentes sendo aposentados, exonerados ou dispensados). A Faculdade de Arquitetura foi a mais atingida pelo expurgo. “A verdade é que os melhores professores foram cassados. Não apenas os que eram de esquerda, também os mais inteligentes e abertos às novas ideias”, assinala Cláudio Levitan. Em meio à turbulência, os estudantes iniciaram uma campanha com o sugestivo título de “Nosso ensino é uma farsa”, que resultou na organização de um seminário para reavaliar radicalmente o currículo e a metodologia de ensino. A faculdade parou para repensar a si mesma.

O presidente do DAFA, durante a realização do seminário com dez dias de duração, era Newton Baggio, que depois ocuparia cargos na prefeitura de Porto Alegre como secretário de Planejamento, nos anos 1980, e de Gestão e Acompanhamento Estratégico no mandato do prefeito José Fortunati. “Muitas das propostas aprovadas no seminário foram adotadas pela direção da faculdade”, recorda ele. Entusiasmados, os alunos passaram a arriscar novas linguagens na apresentação dos trabalhos acadêmicos. Um deles escreveu laudas e laudas na máquina de escrever para depois picotá-las com uma tesoura na frente do professor. Outro construiu maquinetas de moer bonequinhos para explicar o fenômeno físico da compressão e, ao mesmo tempo, criticar uma sociedade que “moía o cérebro das pessoas”. “Tentávamos contorcer tudo do avesso só para ver até onde podíamos chegar. Depois, o professor que se virasse para dar a nota”, sublinha Vasques. Alguns docentes entravam no jogo, outros nem tanto. Um dos mais antigos perdeu a paciência: “Mas, afinal, o que vocês querem?”. Lá do fundo da sala, ouviu-se a voz de uma estudante: “Ora, professor, nós queremos fazer a revolução!”. Nem mais, nem menos.

O comportamento dos estudantes da Arquitetura sofria múltiplas interferências de um mundo que estava sendo posto de cabeça para baixo. Ao mesmo tempo em que se organizavam para combater a ditadura militar, os universitários se entregavam de corpo e alma à revolução de costumes que tomava conta do planeta. “Havia a busca de um caminho alternativo nos moldes do movimento hippie, que misturava drogas e festas. Casamento aberto, sexo grupal, vida em comunidade, tudo entrava na pauta”, lembra Levitan.

Neste caldeirão de influências, havia os adeptos do antropólogo estruturalista francês Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009) e os entusiastas do filósofo alemão Herbert Marcuse (1898 – 1979), autor de Eros e Civilização, que tentava unir as teorias de Freud e Marx. Outros se encantavam com o teórico canadense Marshall McLuhan (1911 – 1980), criador da expressão “aldeia global” e de frases que entraram para o vocabulário moderninho da época, como “O meio é a mensagem”. Sem falar nos fãs do filósofo, linguista e escritor italiano Umberto Eco, que chegou a realizar uma palestra no Dafa antes de ganhar fama.

Na corrida eleitoral para a direção do centro acadêmico, as esquerdas se dividiam entre o Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, e o Partido Operário Comunista, o POC. Ligado ao PCB até por questões familiares, José Antônio elegeu-se presidente do centro acadêmico em 1969 (o pai, Antônio Pinheiro Machado Netto, foi constituinte pela sigla em 1947). Em outubro do ano anterior, tinha participado como representante da faculdade do 30º Congresso da UNE, em Ibiúna (SP), que acabou com a prisão de centenas de estudantes. O Anonymus Gourmet amargou dois meses de calabouço. Quando voltou, havia perdido a data das provas e teria sido reprovado não fosse o gesto de coragem e solidariedade de professores que decidiram aprová-lo, mesmo sem a realização dos exames. “Entre eles, estavam o Flávio Soares e o Ari Canarin”, registra o jornalista, até hoje agradecido.

Em outra trincheira, estavam os defensores da contracultura, movimento underground que se alimentava das ações e propostas dos alunos do campus de Berkeley da Universidade da Califórnia, um dos principais palcos do movimento pacifista dos Estados Unidos nos anos 1960. Carlos Eduardo Weyrauch, o Mutuca, pioneiro do rock gaúcho, salienta que, ao contrário do que diziam os militantes partidários, o pessoal da contracultura estava longe de ser alienado. “Havia um senso crítico apurado com a valorização do psicodelismo e do rock como postura política e comportamental”.

A tribo da contracultura concorreu à sucessão de José Antônio com Mutuca na cabeça da chapa. A plataforma eleitoral incluía bordões do apresentador de televisão Chacrinha – “Eu não vim para explicar, eu vim para confundir” –, além de propostas desconcertantes como “Faremos o Mirante do Óbvio no telhado da faculdade”. Mutuca perdeu a eleição por minguados 17 votos para o grupo de Dirceu José Carneiro, que depois seguiu carreira política como parlamentar e prefeito de Lages (SC), pelo PMDB. “Quando terminou a contagem dos votos, fui ao encontro do Dirceu e sapequei-lhe um beijo no rosto, para espanto e incredulidade dos presentes”, relembra o músico.

Divergências ideológicas à parte, na hora da fuzarca, todas as alas se divertiam juntas. “O sujeito de esquerda namorava a menina hippie e vice-versa”, sintetiza Edgar Vasques. Até porque as dezenas de colchões espalhados pelo chão do Dafa contribuíam para desfazer eventuais discordâncias políticas. Nas paredes da sala, panos pendurados em cores quentes, como vermelho e roxo (instalação do artista plástico Flávio Pons) ajudavam a criar um clima de aconchego.

Para se ter ideia da importância da Faculdade de Arquitetura da UFRGS na vida cultural de Porto Alegre nos anos 1960, basta citar que o Dafa foi responsável pela produção do Arqui-Samba, show musical que trouxe à capital gaúcha – entre 1965 e 1969 – nomes como Baden Powell, Vinicius de Moraes, Silvinha Telles, Tamba Trio e Chico Buarque. Ainda estudante de Arquitetura da USP, Chico se apresentou no cine Cacique, em outubro de 1966, uma semana após ganhar o 2º Festival da Música Popular, da TV Record, com A Banda.

Algum tempo antes, Antonio Aiello (membro da ala cultural do Dafa) havia negociado o cachê com o artista nos bastidores do programa Fino da Bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues, em São Paulo. “Tínhamos firmado apenas um acordo verbal. Mesmo sabendo que poderia exigir três ou quatro vezes mais (após ganhar o festival), ele manteve sua palavra e não nos impôs nenhuma condição suplementar. Caráter é um dos componentes desta figura maravilhosa”, escreveu Aniello em Arquitetura UFRGS – 50 anos de Histórias (Editora da UFRGS, 2002), livro organizado por Flavia Licth e Salma Cafruni em comemoração ao cinquentenário da faculdade. A última edição do Arqui-Samba, em 1969, apresentou os tropicalistas Gal Costa e os Mutantes. “Depois do show, levamos os meninos dos Mutantes para jantar no Barranco. Eu me sentei ao lado da Rita Lee, uma bela moça que devia ter seus 18 anos”, recorda Jorge Polydoro.

Tropicalismo e golpe de cravelha na cabeça
O Dafa promoveu ainda o Festival Universitário da Música Popular Brasileira, no Salão de Atos da UFRGS. Na época, havia um fosso em frente ao palco, onde se acomodavam os músicos da Ospa para acompanhar os concorrentes. O festival contou com a participação de atrações nacionais em começo de carreira, como Danilo Caymmi, Zé Rodrix e Beth Carvalho. A primeira edição, em 1968, até que foi bem comportada. No ano seguinte, inspirados no tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, alguns dos participantes resolveram “romper as estruturas” , como relata o crítico musical Juarez Fonseca em Porto Alegre, Anos 60: uma Década Musical Quase Esquecida, artigo publicado no livro Pensando Porto Alegre (Instituto Hominus, 2012).

O grupo O Succo, liderado por Mutuca, entrou no palco com o baixista Flávio Dias, o Chaminé, vestido de ceroulas e com um penico na cabeça. A irreverência foi interpretada como falta de respeito por alguns colegas, como o pianista e arranjador Geraldo Flach (falecido em 2011). A discussão esquentou nos bastidores, e Renato Português, que fazia parte de O Succo, acertou a cravelha de seu contrabaixo elétrico na cabeça de Flach. “Tivemos que levar o Geraldo até o HPS e ainda passar na delegacia de polícia para registrar a ocorrência. O que livrou o Português da prisão foi o fato de o delegado de plantão ser o Luiz Matias Flach (por coincidência, irmão de Geraldo), que achava que essa gente da música era toda meio doida mesmo...”, conta Polydoro, que exercia a função de contrarregra. Aliás, a principal dificuldade de Polydoro para desempenhar suas atribuições era arrebanhar os músicos, que insistiam em bebericar uns drinques no boteco da esquina. “Havia horário a cumprir porque o festival estava sendo transmitido ao vivo (em 1968, pela TV Piratini, e em 1969, pela TV Gaúcha, hoje RBS TV). Era um stress medonho, porque chegavam sempre em cima da hora.”

Após os incidentes com Flach, O Succo provocou mais uma estripulia. Uma das surpresas preparadas seria espalhar talco no palco. “Daí que, empolgado pela música e ainda alterado pela briga, sem mais nem menos, Português chutou o pacote (de talco industrial) na direção da orquestra postada no fosso em frente – o que, além de sujar os ternos pretos dos músicos, acabou com o som dos violinos”, registra Juarez Fonseca. Infelizmente, não há registro em vídeo dos festivais. “Os rolos de videotape que não queimaram foram danificados pela ação das mangueiras dos bombeiros para apagar incêndios que atingiram os canais de televisão”, explica Luís Carlos Silva, o Lico, um dos organizadores dos shows. Assim, fotos publicadas em jornais da época constituem as únicas imagens disponíveis. Bem que ele tentou reunir a turma para um novo espetáculo em 2012. Uma data chegou a ser reservada no Salão de Atos para a atividade de extensão universitária, que reuniria Danilo Caymmi, Raul Ellwanger, Wanderlei Falkenberg e Beth Carvalho, mas faltou patrocínio. “Um dia sai”, suspira Lico.

Não bastasse a programação musical, a Arquitetura atraía a juventude também pelo “festerê”, como eram chamadas as reuniões dançantes promovidas no primeiro andar do prédio. Outra área privilegiada era o anfiteatro com 200 lugares no piso térreo, onde ocorriam espetáculos de música e teatro. Sem falar nas exposições de artistas plásticos, com charges, desenhos, caricaturas e quadrinhos. Mas, sem dúvida, o evento mais cult da faculdade era o Pontinho, realizado nas noites de sextas-feiras no bar da faculdade. “Não sei por que, o contrato do ecônomo obrigava que ele cedesse o espaço para o Dafa, uma vez por semana. Convidávamos o pessoal da música para dar canja lá”, relata Lico. No Pontinho, palco de novas bandas, apresentou-se pela primeira vez em público o Utopia, trio formado por Bebeto Alves e os irmãos Ronald e Ricardo Frota. “A nossa geração aprontou bastante. Hoje, fica difícil bancarmos os velhinhos bem comportados”, brinca Maria Lucia Sampaio, que interrompeu a faculdade em 1971, quando precisou se exilar no Chile.

Boa parte dos estudantes da Arquitetura viveu com intensidade a experiência universitária, mas não saiu com o diploma da faculdade. É o caso também de Jorge Polydoro e do Anonymus Gourmet. Em 1971, após uma longa noite de estudos para a prova da disciplina de Cálculo, na casa de José Antônio, na Rua Santa Terezinha, os dois jovens estudantes tomaram uma decisão drástica. “Entramos de cabeça nos estudos, mas, quando clareou o dia, chegamos à conclusão de que não dávamos para aquilo. Combinamos, então, que entregaríamos a prova em branco e abandonaríamos a faculdade.” E assim o fizeram.


Pouco importa. Afinal, como escreveu Ivan Pinheiro Machado no livro em homenagem ao cinquentenário da faculdade, a escola da UFRGS representou nos anos 1960 uma “espécie de ilha da fantasia” em uma realidade marcada pelo obscurantismo. “A faculdade era um imenso bar, naquilo que os bares têm de filosófico, lúdico, quixotesco. Muitos de nós devemos à faculdade não uma profissão, mas uma visão de mundo. Um tempo que foi curto, mas que nos deu pistas de que a vida poderia ser diferente, criativa, justa, divertida.”





2 comentários:

Johnny Boaventura disse...

Olá Maria Lúcia,
Me chamo Johnny Boaventura, moro em Caxias do Sul - RS, tenho 19 anos e sou muito interessado pela tropicália, ainda mais quando falamos de tropicália gaúcha! se você tiver algum material a mais sobre esse belo momento na história da arte brasileira, por favor compartilhe... a nova geração tem sede de conhecer as histórias por trás desse período lindo!
Ótima postagem!
Abraços

Maria Lucia disse...

Johnny, obrigada! Meu e-mai é marialuciapsampaio@yahoo.com.br. Me passa o teu e te mando alguns link´s.