O músico João Palmeiro faleceu no dia 23 de janeiro passado, em Porto Alegre.
Apesar de ser o talentoso autor de inumeráveis canções, só teve um CD gravado do qual eu tive a alegria de ser a produtora.
Aí vai o relato do que lembro, 27 anos depois da gravação. Abraço a todos e espero que curtam!
Quando criança, eu ia muito à piscina do Grêmio Náutico Gaúcho,
clube cujos sócios eram na sua maioria moradores do bairro Menino Deus, em
Porto Alegre.
Havia um sobrado antigo onde, no andar de cima, ficava o
salão de baile. Lembro que em algumas tardes, subia a escadaria para ver e
ouvir uns guris, mais velhos do que eu, que tocavam e cantavam lá.
Adolescente, deixei de ir ao clube.
A vida seguiu: casei, morei no Chile, em Brasília, em
Campinas, tive filhos, me separei e voltei a morar em Porto Alegre no início de
1980.
Ao retornar, fiz amizade com o Toneco, que me convidou para fazer vocal num show
dele e do Giba Giba, em 1982. Sempre gostei de música e sempre cantei: nas festas da
escola, no orfeão artístico, no coral de câmara, nas festas com os amigos, com
os colegas da faculdade de arquitetura, onde tinha chance... Cantar com eles
foi a minha porta de entrada para conhecer e fazer amizade com muitos músicos.
E foi assim que fiz amizade com o João. Ele era um grande contador de histórias e eu
gostava muito de ouvi-las. Carinhosamente, me chamava de Mariazinha, a princesa
portuguesa, e para mim ele era o João das Palmeiras! E não é que mais tarde
descobri que era ele um daqueles guris que eu via e ouvia no Gaúcho? rsrs
Mas, o João era um ser complexo: em um momento era afável,
carinhoso, bem-humorado e, no momento seguinte poderia ficar muito irritado e
até violento, mesmo com os amigos mais queridos. Acho que tinha consciência
disso, já que na letra de “Armadilhas” ele nos disse: “quem me pensa as feridas,
se eu agrido os amigos...”.
Nessas ocasiões se transformava em uma outra pessoa, ficava difícil lidar
com ele e o melhor era se afastar até que tudo passasse. Logo passava e os
amigos sempre o perdoavam.
Naquele tempo, João morava em um antigo casarão em
Teresópolis, na companhia dos músicos Zé Caradípia e dos saudosos Cenair Maicá
e Talo Pereira. As portas ficavam sempre abertas para os amigos que se
encantavam com suas muitas e lindas composições.
E foi nestas idas à casa dele que Toneco, Glória Oliveira e
eu, começamos a incentivar o João a gravar suas criações.
O Coordenador de Música da Prefeitura de Porto Alegre era
Carlos Branco, meu amigo desde o final dos anos 80 quando eu programava e
produzia “O choro é livre” no Theatro São Pedro e quando ele ainda era um baita
violonista e um grande “chorão”.
Branco havia criado um projeto com o objetivo de gravar
músicos “da antiga” que nunca tinham tido o seu trabalho registrado. O primeiro da série foi o LP da Banda Municipal do Maestro Macedinho e o segundo ainda estava sendo pensado. Aproveitei a chance, fiz a proposta, ele aceitou e só faltava convencer
o artista.
E não é que o João começou a se entusiasmar? Mas, ainda com
um pouco de dúvida porque a prefeitura estava com o PT e ele não gostava dos
“barbudinhos”, apesar de ter vários amigos de esquerda, inclusive eu. Expliquei
que ele não teria contato com ninguém do governo, a não ser com o Branco e deu
certo, ele aceitou!
Seriam lançadas mil cópias em CD, não em LP. Não gostei
disto, porque naquela época os CD´s ainda eram raros e os CD’s Player muito
caros. Achei que pouca gente teria a chance de ouvir. Mas por sorte, o
Branco não me deu bola, rsrs!
Era início de 1994, João, Toneco e eu começamos a planejar o
CD e a estabelecer algumas diretrizes:
- só
seriam convidados para participar os intérpretes que já haviam cantado as
composições dele (uma pessoa que até ali tinha desconhecido o seu trabalho me
procurou e queria cantar. Brigou comigo quando eu disse que não);
- a
escolha dos instrumentistas seria feita pelo João e pelo Toneco;
- os
arranjos e a produção musical seriam do Toneco. Um belo dia, uma certa pessoa
sussurrou no ouvido do João que o Toneco não poderia exercer as duas funções ao
mesmo tempo e deixou ele em dúvida. Claro, este alguém queria ser o produtor
musical do CD. Conversei com o João, dei um corridão no dito cujo e pronto,
assunto resolvido;
- não
seria consumida bebida alcoólica durante as gravações (não queria correr o
risco daquele "outro João" aparecer por lá) e inventei que esta era uma exigência
dos dirigentes do estúdio;
- todas
as gravações seriam feitas à noite, horário em que todos estariam disponíveis. Eu o buscaria em casa para que participasse
das gravações e depois o levaria de volta;
- o
João não queria cantar, então respeitaríamos a sua vontade e ele não cantaria;
- as
fotos para o CD seriam feitas por seu grande amigo Assis Hofmann.
Havia ainda um “pequeno” problema: a verba disponível era
mínima e não haveria como pagar cachês. Problema logo resolvido porque TODOS os
convidados aceitaram e, mais, se sentiram honrados, porque eram amigos e
admiradores do João.
Lembro de um deles, que era militante da antiga ARENA, ter
me contado que ficou muito espantado por ter sido convidado para participar,
porque a prefeitura estava com o PT.
A gravação seria no estúdio da ISAEC, na época comandada
pelo Francisco Aneli, o técnico de som seria o o Luiz Bozó (hoje Luca Pedregosa, feliz da vida na Itália) e a assistente de estúdio a Daise Dockhorn. Um pessoal muito querido que logo se entusiasmou
com o projeto.
Toneco, eu e João escolhemos dezoito músicas, uma pequena
amostra de suas inúmeras composições. Cada intérprete cantaria a música que
esteve ou estava no seu repertório.
As músicas escolhidas foram: Santuário, Rio do Siriú, No
tempo (parceria com Robson Barenho), Ontem, hoje e amanhã, Onde singram e
balouçam as canoas d’um pau só, Caminho do Oswaldino (parceria do Zé
Caradipía), O trabalho do Milton, Armadilhas, Águas abertas, O orvalho e a rosa
(parceria com Mutinho), Outonal (parceria com Ivaldo Roque), A solidão vertical
do edifícios, Mirante, Girassóis (parceria com Clóvis Alegre que hoje se assina
Alegre Corrêa), Moça Litorânea, Samba da Borges (outra parceria com Mutinho),
Popa de leque e O calhau.
Isto posto, foi escalado o time de intérpretes e
instrumentistas:
Participaram do CD como intérpretes: Fátima Gimenez e sua
filha Adriana, Flora Almeida, Glória Oliveira, Josiane Picada, Zé Caradípia e
Heleno Gimenez nos vocais.
Os instrumentistas foram: Adão Pinheiro (piano e arranjo da
sua faixa), Argos Montenegro (bateria), Beto Bollo (violão), Chico Gomes
(flugelhorn) Clóvis Ibañez (harmônica), Evaldo Guedes (contrabaixo acústico),
Fernando do Ó (percussão), Geraldo Flach (piano e arranjo de "orvalho e a Rosa"), Luiz
Carlos Borges (acordeom), Pedro Figueiredo (flauta), Renato Borghetti (gaita
ponto), Ricardo Arenhaldt (bateria), Ricardo Pereyra (cello), Toneco da Costa
(produção musical, piano, violão e arranjos) e Zé Caradipía (violão).
Entusiasmado, João mudou de ideia e resolveu que também
cantaria! Ele cantando foi uma grande surpresa para nós porque era a primeira vez em
que entrava num estúdio e gravou como um profissional.
Em junho de 1994 as gravações começaram. O clima foi sempre
de muita alegria, com o João felicíssimo na companhia de seus amigos queridos
vendo o seu trabalho sendo curtido e valorizado.
Tudo decorreu muito bem, com alguns pequenos percalços,
rsrs. Lembro de alguns:
- O contato com o Borghetti foi feito pelo João e quando ele
chegou no estúdio não sabia em que músicas participaria (seria em duas, ambas
cantadas pelo João). Levou uma gaita
ponto que só “tocava” em um determinado tom (não sei se todas eram assim), mas
o João já tinha gravado cantando em outro tom. E, para piorar a situação, o
Borghetti só poderia gravar naquela noite porque já tinha uma viagem
programada.
Foi quando o Bozó lembrou de umas “máquinas” antigas que
havia no estúdio, que tinham vindo dos Estados Unidos em 1970, quando o estúdio
foi montado pela Igreja Evangélica de Confissão
Luterana. Foi a nossa salvação!
Moral da história: o Borghetti tocaria no tom da sua gaita,
mas a tal máquina modificaria o som a ser gravado passando para o tom em que o
João cantava. Mas, para complicar um pouco mais a vida do Borghetti, ele tocaria em um tom e nos
fones de ouvidos escutaria o João cantando em outro.
Mas, tudo saiu perfeito, com Borghetti improvisando e mais
uma vez mostrando ser um grande músico!
- o pai do João era militar e ele gostava muito de armas. Tinha porte e andava sempre armado. Por isto,
combinamos que logo que chegássemos no estúdio ele me entregaria a arma que ficaria "bem quietinha" dentro de uma sacola. Quando saíssemos do estúdio eu devolveria.
Numa noite ele entrou no carro, me mostrou um
soco inglês e disse que não me entregaria. Tive um chilique, parei o carro e
disse que ele descesse com o seu soco inglês. O coitadinho se assustou
com a minha reação e achou que seria melhor me entregar.
- Em uma outra noite, entrou no carro com uma garrafa de
vinho e uma taça. Embrabeci, mas não adiantou nada. Chegamos no estúdio e a
primeira coisa que ele fez foi encher a taça e beber. Bem nesta hora, entra no estúdio o Aneli, que quase nunca aparecia. O João não sabia o que fazer. Ficou completamente sem graça, escondeu a
taça e a garrafa e não tomou mais o vinho.
- No final das gravações o estúdio ofereceu um churrasco em
sua homenagem. O clima era de seriedade e o ele estava bem faceiro. Lá pelas
tantas, surgiu aquele outro João e começou a fazer um discurso sobre o exército
brasileiro na guerra. Foi se empolgando e o Toneco e eu sabíamos que não ia dar
certo. Então, o Toneco, que estava ao lado dele, deu-lhe uma joelhada por baixo
da mesa e na mesma hora ele ficou querido de novo.
Agora fico pensando naquela passagem, acontecida em 1967,
quando o grupo “Canta Povo”, do qual o João fazia parte, estava pronto para
assinar um contrato com a Philips e João brigou com o diretor artístico da
gravadora Armando Pittigliani. Quem sabe faltou alguém que desse uma joelhada
nele por baixo da mesa?
Pois é, este era o João das Palmeiras, um menino
transgressor. Não foi por acaso que durante muitos anos ele foi pra nós o Joãozinho.
O CD, modéstia à parte, rsrs, ficou muito bonito, fez muito
sucesso e os que participaram comentam que se sentem orgulhosos. João ficou
feliz e, o mais importante, seu talento foi reconhecido e valorizado.
Foi lançado em 1995, com um show no Teatro Renascença, em Porto Alegre com a presença de quase todos os músicos que participaram do CD e com o teatro lotado. João ameaçou não ir, se atrasou, mas foi. E tudo saiu perfeito, para alegria geral!
Capa do CD
Contracapa
p.s. - fiz um vídeo com os contatos de momentos da gravação, escaneados por mim. A qualidade não está lá muito boa, mas dá para ter uma ideia de como foi.
p.s. 2 - no meu canal do youtube, está o CD "Águas Abertas" em duas partes.
Na playlist "João Palmeiro" estão todas as faixas separadamente
p.s. 3 - quero agradecer aqui à querida Caroline Capela, filha do coração do João, e que cuidou dele com muito carinho quando foi preciso.
Uma das últimas fotos do João, de Andressa Pufal, na excelente reportagem cultural "A bossa com sotaque gaúcho" (sobre o João), de autoria de Paulo Cesar Teixeira, publicada em outubro de 2021, no Jornal do Comércio em Porto Alegre.