30.7.18

Chile, setembro de 1973/ segunda parte

  "Hay más verdad en los recuerdos que en la historia."
Remis Ramos Belmar


Em setembro de 2013, escrevi a primeira parte deste relato e precisei de quase cinco anos para escrever a continuação que publico hoje.
Quero que, pelo menos, meus netos fiquem sabendo destas vivências dos seus avós e espero que contem para seus filhos e que seus filhos contem para seus filhos e assim por diante...

* para ler o início já publicado é só clicar no link acima.

Base naval de Talcahuano
No final do dia 12 de setembro, um dia depois do golpe, fomos finalmente identificados pela Marinha, na Base Naval de Talcahuano. Não lembro se perguntaram alguma coisa ou se só checaram os nossos documentos, mas, pelo menos alguém viu que existíamos!
Confiscaram nossos cintos, os cadarços dos sapatos e aquele meu desodorante que não era uma bomba... O forro da cinta do Renato tinha um ziper e ali 40 dólares que nunca mais apareceram.
Já era noite e nós, as mulheres, fomos levadas para uma cela da Base Naval, uma sala relativamente grande, com vários beliches e grades nas janelas. Fiquei imaginando que, não fazia muito tempo, os marinheiros leais a Allende haviam estado ali (tenho guardado até hoje um botão dourado de uniforme que encontrei no chão). *
Sempre fui claustrofóbica e tinha pensado muitas vezes como me comportaria se algum dia fosse presa. Pois me comportei muito bem! Só muitos dias depois, já em liberdade, me dei conta de que teria sido impossível sair dali quando eu bem entendesse.
Depois de quase 12 horas sem comer (a não ser o sanduíche dado pelo cossaco),  nos deram um maravilhoso e quente café com leite e um sanduíche bem grande. Mas, grande também era o medo: o que ia acontecer conosco? E o Renato, onde estaria?
No meio da noite chegou uma companheira brasileira, Áurea, que estava há pouco ao Chile como turista.

Ilha Quiriquina
No dia seguinte, 13 de setembro, um barco nos levou para a Ilha Quiriquina, a 11 km de Talcahuano, onde havia uma “Escuela de Grumetes” (onde eram formados os futuros marinheiros) e um forte.
Será que sairíamos vivos de lá?
Chegando à ilha fomos levadas para o ginásio de esportes e ao entrar fomos aplaudidas pelos homens. Éramos as primeiras mulheres a chegar e ficávamos todos juntos. 
Enfim, reencontrei Renato e ali passamos todo o dia aguardando sermos chamados para um interrogatório que definiria o nosso destino. 
Não lembro o que nos davam para comer... Mas lembro que nossos sentinelas eram jovens adolescentes, aspirantes a marinheiro, que tinham muito medo de nós. Soube depois que haviam sido doutrinados e que nos temiam de verdade. 
Não sei quem tinha mais medo de quem, se nós deles ou eles de nós. Mas havia uma grande diferença: eles tinham submetralhadoras carregadas apontadas para nós! Eu tinha a certeza de que, se tropeçasse ou tossisse, eles atirariam em mim.
Lembro que o banho de sol era dentro de uma piscina vazia com armas apontadas para nós. O medo crescia...
Chegavam novas levas de detidos que traziam notícias, mas ninguém sabia muito bem o que estava acontecendo, se havia resistência, se havia muitas pessoas presas, as informações eram muito desencontradas.
Renato e eu também lá participavamos do movimento estudantil e éramos simpatizantes do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) que tinha uma postura crítica em relação à Unidade Popular. Mas, Renato e eu já havíamos combinado a história que contaríamos para os milicos: estávamos no Chile para estudar e não tínhamos nenhum envolvimento político.
Entre os presos havia alguns companheiros “miristas” da Universidad de Concepción, mas em função do que havíamos combinado não podíamos mostrar que conhecíamos estes colegas. Certamente, haveria delatores infiltrados que se dariam conta de que tínhamos participação política.
Os chilenos não tinham nenhuma experiência com a repressão (o último golpe de estado havia sido nos anos 30), não tinham noção de regras mínimas de segurança que deveriam ser seguidas naquela situação. Tínhamos que pedir a eles que não conversassem conosco, até porque nós também poderíamos prejudicá-los. Infelizmente, por esta inexperiência, alguns não entendiam a nossa recusa em conversar. Foram momentos difíceis e tristes, em que parte dos nossos companheiros chilenos não entendia o risco que todos estávamos correndo.
 No final do dia, só as mulheres fomos levadas para dois quartos com beliches. Com as luzes acesas e a porta aberta, dois milicos armados passaram a noite caminhando de um lado para o outro no corredor e nós não conseguimos dormir. 
Lá pelas tantas, escutamos aviões sobrevoando a ilha e ficamos aterrorizadas, com medo de que fossem de forças contrárias ao golpe (uma das companheiras havia contado que, em caso de ataque, os prisioneiros seriam mortos). Mas, não aconteceu nada e até hoje não sei que aviões eram aqueles. Felizmente, só passei esta noite na ilha, uma noite terrível.
Na manhã seguinte, 14 de setembro, novamente fomos levadas para o ginásio de esportes onde dormiam os homens. As camas haviam sido retiradas e os colchões estavam no chão frio e úmido. Como o lastro das camas era feito de lâminas de metal, alguns resolveram fazer “facas” com elas, afiando-as no chão. É claro que os milicos ficaram sabendo. Quanta ingenuidade dos companheiros...

Saindo da Ilha
Finalmente, naquele dia, fui chamada para o interrogatório e quando pedi a presença do Cônsul do Brasil riram de mim. Pedi só para constar porque sabia que os milicos não estavam respeitando nenhum acordo internacional.
Contei o que tínhamos combinado e eles concluíram que eu não tinha participação política e que poderia ir embora da ilha. Áurea, a outra brasileira, também foi liberada, mas Renato não foi interrogado e passaria outra noite lá.
Um rebocador nos levou de volta à Base Naval, no continente, junto com umas 20 pessoas que também estavam sendo liberadas (pelo menos, era o que parecia).

    O MIR tinha militantes “públicos” e militantes “fechados” e, para minha surpresa, estava conosco no barco o apresentador de todos os comícios e atos do MIR. Como era uma figura muito conhecida, estranhei que não soubessem quem era. Que sorte, pensei, não o reconheceram.
Era noite quando chegamos à base. Nos separaram em dois grupos: o nosso foi levado a um escritório e o outro sumiu na escuridão. O militante “aberto”, que não ficou conosco, é um dos muitos que foram “desaparecidos” pelos milicos. 
Enquanto estávamos lá, vi muitos homens bastante machucados chegarem em caminhões militares. Inesquecível a cena de um velho sendo empurrado violentamente de cima do caminhão e o rosto do Secretário Geral da Federação de Estudantes da Universidade de Concepción, o militante comunista Antonio Leal deformado pelos golpes. Soube depois que estes detidos eram levados para o forte que havia em outra ponta da ilha, onde eram cruelmente torturados e de onde muitos nunca mais voltaram.

Os milicos nos comunicaram que Áurea e eu seríamos liberadas e que ganharíamos um salvo conduto para podermos andar na rua durante o toque de recolher que já havia iniciado. Queriam que eu e Áurea desembarcássemos do ônibus da Base em uma avenida de onde teríamos que caminhar três quadras para chegar ao edifício onde Renato e eu morávamos. Teríamos que fazer este trajeto com as mãos na nuca e com o salvo conduto na mão, de forma bem visível.
Reclamei e disse que desta forma não sairíamos. Não expliquei as razões, mas tínhamos ficado sabendo que os milicos estavam estuprando mulheres durante o toque de recolher e, além disto, corríamos o risco de levar um tiro.
O oficial que estava nos atendendo disse rispidamente que já tinha ouvido falar que as mulheres brasileiras eram bastante voluntariosas e opinativas, mas que não sabia que era tanto, rsrsrs
Resumindo: ganhamos o tal salvo conduto e dois milicos nos acompanharam até a porta do apartamento, bem como eu queria.


Durante a noite, Áurea e eu escutamos a porta do medidor de gás, no corredor, ser aberta e fechada. Pela manhã, encontramos lá dentro uma bandeira nazista. Armei um escândalo para que todos os vizinhos vissem e queimamos a bandeira (um dos comunicados determinava que fossem destruídos todos os símbolos de partidos de esquerda e do nazismo. "Me engana que eu gosto", rsrs).
No dia seguinte, Renato foi liberado.

De volta pra casa
Livres, nossa primeira tarefa foi sumir com livros, revistas e documentos que ainda tínhamos em casa e que foram queimados no forno e na banheira. Quando nos liberaram fomos avisados de que receberíamos a “visita” de milicos do exercito para inspecionar o apartamento. Além disto, aainda corríamos o risco de ser denunciados por algum vizinho golpista. 
A nossa segunda tarefa, igualmente importante, era avisar às nossas famílias que estávamos sãos e salvos, pelo menos até aquele momento.
Fomos aos Correios, mas não havia possibilidade de enviar telegramas e as chamadas telefônicas internacionais estavam proibidas.
Como tínhamos o endereço de um radio amador (amigo do pai de grandes amigos nossos em Porto Alegre) fomos até a casa dele e nos apresentamos como amigos do Dr. Fulano (que também era radio amador).

Enquanto ele nos explicava que estavam proibidas as comunicações por rádio, bateram na porta e entrou um homem à paisana com uma arma na mão. Foi na direção do Renato  gritando: “tu és brasileiro”. Me indignei, pedi explicações, ele não deu bola e saiu com o Renato, sempre gritando: “és daqueles estrangeiros que vêm roubar nossas mulheres!”. Soube depois, pelo Renato, que o milico pensou que eu era chilena. Sorte a nossa! Mas, o radio amador apavorado me botou porta a fora. E agora, o que fazer?

Voltando a 1971: quando resolvi viver no Chile com o Renato, minha mãe quis que casássemos pela lei brasileira e para nós isto não fazia nenhuma diferença. O casamento teria que ser no Consulado Geral em Santiago e ela tratou de todos os trâmites. Então, embarquei levando a papelada para podermos casar.
Concepción só tinha um cônsul honorário, Don Erick, um velhinho inglês muito simpático. Quando cheguei fui conversar com ele, que se dedicou de corpo e alma para nos casar. Sugeriu colocar o seu endereço na certidão de casamento como sendo o meu, para que não constasse que eu já vivia com o noivo, rsrs.
Depois disto, ficamos amigos. De vez em quando eu o visitava e, como ele não falava em política, eu não precisava expor o que pensava.  

Voltando a setembro de 1973: depois que o homem levou o Renato e eu fui expulsa da casa do rádio amador, não tinha a quem recorrer porque não sabia onde estavam os amigos brasileiros e nem em que situação estavam os amigos chilenos.
Então, fui procurar Don Erick e relatei o que tinha acontecido. Como tínhamos sido liberados pela Marinha, ele ficou com a certeza de que não éramos de esquerda. 
Por casualidade e para nossa sorte, sua filha era secretária do contra-almirante golpista Jorge Paredes, comandante da II Zona Naval.  Ele imediatamente telefonou para ela, relatou o caso e me tranquilizou porque o Renato seria libertado, o que realmente aconteceu
Um colega da universidade viu o Renato entrando na casa do radio amador e o denunciou para o um policial como brasileiro apoiador do Allende.
Depois disto, Renato tirou a barba, cortou o cabelo bem curto e quase não saia de casa. Diferentemente de mim, que sempre falei até com os cachorros da rua, ele não se relacionava com os colegas de direita e ficamos com medo de novas denúncias.
Mantínhamos o nosso apartamento arrumadíssimo esperando a tal “visita” dos milicos, até que eles apareceram. Pediram os documentos do Renato, olharam todo o apartamento e nem ligaram para mim, toda bonitinha de avental, me fazendo de dona-de-casa. Nem os meus documentos pediram.

Apesar de já termos decidido sair do Chile, fomos à Universidad de Concepción fazer a nossa rematrícula, o que estava sendo solicitado. Infelizmente, não encontramos ninguém conhecido.
 Conseguimos localizar uma parte dos amigos brasileiros num refugio do Comitê Nacional de Ajuda aos Refugiados/ ONU e fomos visitá-los. Nos cadastramos para termos um pouco mais de segurança. 
Enquanto isto, em Porto Alegre, sem ter informações sobre nós, meu pai se preparava para ir ao Chile com o jornalista Flávio Alcaraz Gomes, com quem tinha trabalhado, para "buscar nossos corpos". Imagino o sofrimento dos nossos queridos.


Outros amigos brasileiros foram levados para a Ilha Quiriquina, onde passaram fome e frio durante muitos meses, até poderem sair do Chile rumo ao exilio. Tivemos sorte de ter estado lá nos primeiros dias depois do golpe.

Mais informações em: Centro de Detenção/ Ilha Quiriquina

em outubro, jornalistas de Concepción visitaram a ilha.














Dentro da piscina vazia nossos amigos brasileiros
 Tomaz, Lucio, Vando e Joaquim Jaime.

Dia 18 de outubro fomos para Santiago, de onde sairia nosso avião para Porto Alegre. No caminho para o aeroporto pedimos ao motorista do taxi que passasse em frente ao Palácio de La Moneda, em parte destruído pelo bombardeio do dia 11 de setembro. 
O Presidente Allende morreu ali. A emoção que senti é indescritível.
Renato e eu embarcamos para Porto Alegre com uma enorme tristeza nos nossos corações. Havia fracassado a “via chilena para o socialismo” e o “homem novo” do Che Guevara voltava a ser apenas um sonho.


* Sobre a prisão dos marinheiros leais a Allende:

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