9.9.13

Chile, setembro de 1973/ primeira parte

"Hay más verdad en los recuerdos que en la historia."
Remis Ramos Belmar


Para nós, brasileiros que vivíamos no Chile em 1973, o golpe não foi uma surpresa porque já tínhamos a experiência do golpe brasileiro. Mas, os chilenos não conheciam outra coisa senão a estabilidade das instituições democráticas e admitiam, quando muito, a possibilidade de um golpe branco, sem o uso da força. O fato é que, lá no fundo, todos nós tínhamos a ilusão de que Salvador Allende permaneceria no governo até o fim de seu mandato, apesar da constante tensão.

Com meus pais, embarcando para o Chile/ junho de 1971 

Cheguei ao Chile em 1971 para encontrar meu namorado, Renato Dagnino, que havia sido expulso da UFRGS pelo decreto 477 que já estava lá. Nós dois militávamos no movimento estudantil, em Porto Alegre. Ele fazia parte da diretoria do DCE/UFRGS e era presidente do CEUE (Centro dos Estudantes Universitários de Engenharia)e eu, estudante de Arquitetura, era simpatizante de um grupo trotskista.


Minha chegada a Concepción, no sul do Chile, num sábado à tarde, foi um pouco assustadora. Era inverno, fazia frio, chovia muito e fomos à Universidad de Concepción participar de uma reunião de estudantes e eu não entendia o que falavam, porque era muito diferente do castelho que eu tinha escutado e falado até aquele dia.
Mas, eu tinha 23 anos e uma alegria imensa por estar ali! O Chile do Presidente Allende, da Unidad Popular, do MIR e da via pacífica para o socialismo, era o sonho de todos os jovens de esquerda da América Latina (ou seria o sonho de todos os jovens de esquerda do mundo?).
O frio, a chuva, o vento e os pequenos "temblores" logo entraram na minha rotina, assim como a comida, o idioma e a cultura. Descobri novos amigos, reencontrei alguns e a vida entrou num ritmo novo e muito bom. 


Com Renato/ 1971

No comício do Presidente Allende em Concepción 
maio de 1972

No Chile aprendi a ser “dona-de-casa”. Filha única de mãe filha única e única neta, morando com avó e bisavó, além dos pais, eu não tinha a menor ideia de como cuidar de uma casa e de como cozinhar. Não sabia se alface se comia crua ou cozida e quando li numa receita “sal a gosto”, não sabia a quantidade que deveria colocar porque nunca tinha salgado nada na vida!
No início sofri um pouco, mas fui aprendendo. Por sorte, Renato sabia cozinhar, conhecia melhor do que eu as atividades domésticas e me ajudou muito. 
        Acabei aprendendo a fazer tudo: a cozinhar, limpar e organizar a casa, lavar a roupa e  aprendi até a costurar, mas à mão (como faço até hoje). Só muito depois da nossa chegada foi que conseguimos ter uma diarista para nos ajudar.
    Minha avó paterna se preocupava porque eu não era uma "mocinha prendada”, mas minha avó materna dizia que “quando eu precisasse, eu aprenderia”. E assim foi. A dor ensina a gemer e ensina mesmo!
Mas, não entendam mal, eu não era nenhuma “dondoquinha”.  O que aconteceu foi que, até ali, eu me dedicava mais às lides do intelecto, da cultura e do lazer, rsrs. 

    No Chile, Renato estudava Economia na Universidad de Concepción e trabalhava na Petroquímica Chilena e eu estudava Arquitetura na Universidad Técnica Del Estado e Sociologia na Universidad de Concepción. 
Quando cheguei em Concepción havia poucos brasileiros: Percy e Célia, Jun, Jaime, Bené, Lucio, Fred, Renato e eu. Jaime já estava casado com a chilena Mitzi; Fred casou em seguida com a também chilena Carmen; Percy e Célia, um pouco mais velhos do que nós, já tinham filhos. Os demais, jovens como nós, mas solteiros, viviam na moradia estudantil, dentro do campus da Universidad de Concepción. Um tempo depois, Jun casou com a argentina Marta e Bené com a chilena Tereza.  Esta era a nossa família.
Mais brasileiros foram chegando e se agregando à esta pequena “Colônia”. Estávamos integrados à vida do Chile e à luta dos chilenos. Eu me sentia comprometida com o Chile e acredito que a maioria de nós se sentia também!

Apesar da dor do golpe, foi um período de muita alegria, de aprender muito, de viver muito, de sentir muito, de conhecer muito e, principalmente, de estar fazendo parte!


Casamento do Fred, da esquerda para a direita: Bêne, Jun, Jaime, Marta, Renato e eu, Fred e Carmen, Percy e Célia/ 1971

Golpe
Na manhã do dia 11 de setembro eu estava sozinha em casa. Renato havia saído cedo para o trabalho. Eu, como sempre, estava com o rádio ligado e assim pude escutar o discurso de despedida de Allende, seguido por marchas militares e pelo comunicado das forças armadas e carabineiros declarando que uma junta militar havia tomado o poder. Nosso sonho de um mundo novo começava a desmoronar.
Que desespero! E o que fazer?
Minha primeira providência foi procurar Tomás, um amigo brasileiro que vivia nas proximidades e que não tinha rádio. Precisava avisá-lo do golpe e precisava, também, do seu apoio. Não sabia a que horas Renato chegaria em casa e se teria problemas na Petroquímica que, como todas as estatais, era um reduto da esquerda.
No rádio, com todas as estações em cadeia nacional, continuavam os comunicados da junta golpista e as marchas militares. Eu estava com muito medo!
Num dos comunicados foi instituído o “toque de queda” (toque de recolher), o que significava que durante sua vigência ninguém poderia aproximar-se das janelas e sair de casa entre às 18 hs e às 6 hs sem um salvo conduto dado pelos milicos. 



Nosso apartamento era o primeiro à direita/ 
foto feita no verão de 2004.

Apesar de morarmos em um bairro de trabalhadores, no nosso edifício havia gente contrária ao governo. “Falta todo!”, reclamavam sem se dar conta de que esta “falta” era uma poderosa arma da oposição contra o governo da Unidad Popular. Mas, infelizmente, o que bradavam era a mais pura verdade! Era quase impossível encontrar alguns produtos fundamentais no dia a dia, como por exemplo: papel higiênico, guardanapos, fósforos, isqueiros, farinha, açúcar. As gôndolas dos supermercados estavam ficando cada vez mais vazias... Só que, em volta do mercado públicos havia de tudo com preços altíssimos para quem quisesse e pudesse comprar no mercado negro!
Quando voltei da casa do Tomás, os vizinhos do apartamento ao lado me convidaram para brindar com champanhe o fim do governo Allende e eu tive que brindar! Foi doloroso, mas não havia alternativa naquele momento. Eram meus amigos, conversávamos, trocávamos receitas, mas eu sabia o que pensavam. E por mais estranho que possa parecer, foram estas mesmas pessoas que me ajudaram a tirar de casa muitos dos nossos livros (em um dos comunicados, a junta militar proibiu qualquer tipo de publicação de esquerda).  Naquele mesmo dia, a vizinha e eu, de braços dados como quem volta das compras, fomos até um terreno baldio e, procurando não sermos notadas, deixamos lá minhas sacolas cheias de livros. Seu genro, militante do grupo fascista “Pátria e Libertad”, no dia seguinte, levou para o seu sitio, em sua caminhonete,  mais sacolas com publicações. Ele mesmo se ofereceu dizendo sabia que Renato estudava economia e que por isto deveríamos ter muitos dos livros que passaram a ser proibidos.

        Renato, por sorte, chegou em casa à tarde, são e salvo. 
À noitinha, antes do toque de recolher, recebemos em nossa casa dois amigos: Vando, um pernambucano, e sua companheira chilena Ana Rosa, dirigente da Juventude Comunista de Concepción, uma figura pública. A Universidad de Concepción tinha sido invadida pelos militares e como nossos amigos viviam na moradia estudantil não tinham onde dormir. E na manhã do dia 12, ao saírem, foram vistos pela nossa diarista que, dias mais tarde, nos chantageou. Fomos obrigados a pagar pelo seu silêncio em dólares. Mas, bem feito pra ela que saiu perdendo! Como já sabíamos que teríamos que deixar o Chile,  pretendíamos presenteá-la com todos os nossos móveis, nossos utensílios de cozinha e com a nossa geladeira (artigo raro no nosso bairro, presente dos meus pais, assim como o pagamento dela). 

Ainda nesta mesma manhã, um dia depois do golpe, um comunicado da junta militar determinou que todos os estrangeiros deveriam se apresentar na Delegacia de Estrangeiros. Em Concepción havia poucos brasileiros, menos de trinta, todos apoiadores do governo de Allende e ilhados em uma cidade sem embaixadas. Portanto, não havia alternativa, teríamos que nos apresentar.
Organizamos uma reunião com os brasileiros que pudemos localizar e foi decidido que Renato e eu seríamos os primeiros a nos apresentar. O motivo era simples: éramos os únicos que possuíam o passaporte brasileiro válido e o visto chileno de permanência em dia. Depois, estabelecemos uma ordem para a apresentação dos demais. Caso não voltássemos, alguns não se apresentariam porque, certamente, seriam presos por terem saído clandestinamente do Brasil e por estarem visados no Brasil.

Vesti minha melhor roupa, calcei meus sapatos novos e fomos nos apresentar. Ao chegarmos lá  demorei a entender que deveria obedecer à ordem de "mãos ao alto". Depois disto, houve um incidente tragicômico: ao revistar a bolsa que eu levava o policial encontrou o meu desodorante comprado no Brasil (e não me perguntem porque ele estava lá!). Era de um  desodorante em bastão que ainda não havia no Chile: a embalagem era um cilindro de plástico preto que, com o uso, teve as letras do rótulo apagadas. Pois não é que o policial achou que era uma bomba?! Foi difícil, mas conseguimos que ele abrisse. Por sorte, não explodiu, rsrs.
Nos deixaram em uma sala cheia de estrangeiros, onde não havia cadeiras para todos. Lá pelas tantas, os europeus foram liberados e nós ficamos. Ninguém nos dizia que estávamos presos, mas não podíamos ir embora.
No final da tarde, ainda sem nenhuma explicação (e sem comer desde o café da manhã), embarcamos em um ônibus dos carabineiros e fomos levados para o Estádio Regional de Concepción. Ficamos em um dos vestiários, embaixo das arquibancadas de concreto, um lugar horrível, úmido, frio e sem janelas. A partir deste momento estávamos sob a guarda do exercito chileno e não mais da polícia civil. Dava para perceber que tudo estava muito bem planejado. Ninguém falava conosco, não nos explicavam nada, já era noite e estávamos com muita fome. 
Apesar de todo o medo, um fato me tranquilizava: ali conosco estava um paraguaio, meu colega de aula, que era sobrinho de Stroessner, o então ditador do Paraguai.

        Ainda sem termos sido identificados, de novo em um ônibus dos carabineiros, fomos transferidos para a Base Naval de Talcahuano, a 15 km de Concepción. Para meu desespero, meu colega não foi conosco, foi liberado... 
A partir daquele momento, estávamos sob a guarda da marinha chilena e o medo aumentava!
Chegando à base, ainda no continente, fomos levados para o ginásio de esportes onde já havia outros presos, mas nenhuma mulher. Os homens ficavam deitados no chão, no centro do estádio, de barriga para baixo, com as pernas abertas e com a cabeça sobre as mãos e nós sentadas nas arquibancadas, bem separados umas das outras. Éramos somente nove, enquanto que os homens já eram algumas dezenas. Lá encontramos muitos amigos e colegas chilenos.
Antes do golpe, já tínhamos ouvido falar dos cossacos, como era chamada a tropa de elite da marinha. Em agosto, antes do golpe, havia surgido uma denúncia de que marinheiros leais ao governo haviam sido presos e torturados por eles na base naval onde estávamos. Eram eles que vigiavam as mulheres, sentados próximos de nós nas arquibancadas. Foi quando aconteceu um fato surpreendente, quase inacreditável: os temidos cossacos, mesmo sem saber quem éramos nos passavam sanduiches às escondidas.
No final da noite fomos identificados e apesar de não nos darem nenhuma informação, agora tínhamos certeza de que estávamos presos! 


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6 comentários:

Maria Betânia Ferreira disse...

Dureza ler isto neste período do ano. Imagino a dureza de escrever.

Anônimo disse...

você resumiu bem o que passamos. Eu tentava andar na rua sem chorar(sou chorona), estava chocada com a morte do presidente no bombardeio. Mas desabei quando vi a Junta de Vecinos caiando o mural feito por crianças de escola pública pintando a profissão de seus pais humildes, o mesmo mural que me recebeu logo em frente 'a estação de ferro e me fez me apaixonar por Concepción

ex-residente disse...

querida tia,
teu relato emociona, e me faz te entender muito melhor...
por favor continua escrevendo, tah?
bj,
enr

Maria Lucia disse...

Beijo, Queridos!

Terapéutika disse...

Compañera, nunca nos vimos, nunca nos conocimos, sin embargo vivimos la misma dureza, la misma angustia, el mismo dolor... um abrazo

Maria Lucia disse...

Sobrevivemos...
Outro abraço.