18.3.20

Repeteco

Prateleiras vazias, panelas batendo, corrida por papel higiênico  e confinamento não são novidade para mim porque vivi isto no Chile, nos anos 1970.

Dois anos antes da queda do presidente Allende, as prateleiras do comercio de produtos básicos começaram a se esvaziar.
Os articuladores do golpe criaram artificialmente um desabastecimento de produtos de primeira necessidade. Entre outras coisas faltou papel higiênico e guardanapos de papel que poderiam substituí-lo, faltaram fósforos, isqueiros, leite e leite em pó, café, café solúvel, chá, pão nas padarias, farinha de trigo, azeite, banha, manteiga, margarina, açúcar, carne de gado e de frango...

No início, espalharam o boato de que iriam faltar alguns produtos e as pessoas assustadas começaram a estocar. Ao mesmo tempo, a produção nas fábricas foi sendo reduzida ao mínimo e, em alguns casos, foi escondida pelos fabricantes e pelos grandes distribuidores. Então, instalou-se o caos social que os golpistas precisavam.

E foi assim que aprendemos uma palavra: acaparamiento*, uma palavra que nunca tínhamos escutado, mas que escutaríamos muito dali pra frente!

Nesta época, entre outros quitutes, comemos frangos vindos do Peru e que, alimentados com farinha de peixe, tinham gosto de peixe, rsrsrs e carne de baleia vinda da China, com cara de carne de gado mas com gosto de peixe, rsrs.

Meu companheiro e eu líamos, um para o outro, o livro da Dona Benta com receitas impossíveis de serem feitas porque não havia os ingredientes à venda.


Hoje pode parecer engraçado, mas não era..


Morávamos em Concepción, no sul do Chile, e nas calçadas próximas ao Mercado Municipal começou a funcionar o "mercado negro". Ali estavam à venda todos os produtos que faltavam nas prateleiras do comercio legalizado, mas com um preço altíssimo.


Se não fossem as Juntas de Abastecimento e Controle de Preços, (postos de venda racionada dos produtos "desaparecidos") criadas nos bairros por pelo governo da Unidad Popular, não sei como teria sido.


Já as panelas bateram pela primeira vez nas "marchas das panelas vazias" em Santiago, nas mãos das mulheres da classe media e alta que diziam não ter o que comer. 

Com tudo isto acontecendo, o temor foi se instalando e preparando o clima propício para o golpe 11 de setembro. 

O grupo "Quillapayun", ligado ao Partido Comunista, gravou uma música dedicada a estas senhoras. **

No início, um diálogo que diz:

Cliente: - filho, me trás um sanduíche de crocodilo com abacate, por favor;

Garçom: - não tem crocodilo;

Cliente: - é o cúmulo, até onde vamos chegar com este governo!



No dia seguinte ao golpe uma surpresa: as prateleiras estavam repletas, não faltava nada!


O confinamento vivemos depois do golpe. 

Meu companheiro e eu, tínhamos sido presos (por sermos brasileiros) numa ilha da marinha, a Quiriquina**. Por isto, e não podíamos nos expor muito caminhando pela cidade. O clima era de caçada aos latino-americanos residentes, quase todos de esquerda.

A cidade era pequena, então, todo o cuidado para não sermos presos outra vez era pouco.

A partir das seis da tarde, não sair de casa já não era uma escolha nossa. Éramos obrigados a fazer isto por causa do toque de recolher.

A cidade se esvaziava e nas ruas silenciosas só estava o exército e os carabineiros, armados até os dentes. Se encontrassem alguém, atiravam.

O confinamento em 1973 tinha uma causa diferente do que estamos vivem hoje e não pensei que veria e viveria tudo isto de novo. 

Muito triste.


Foto feita hoje em uma das ruas com mais movimento de pedestres
 no centro de Florianópolis. 

"Se busca la creación de desabastecimientos de productos de primera necesidad. Para ello se utilizan varios métodos. Por un lado la rumorología sobre el propio desabastecimiento provocaba la acaparación de esos bienes ante el temor de su ausencia. Por otra parte las empresas y fábricas chilenas reducen deliberadamente su producción al mínimo, siendo denunciadas por sus propios trabajadores, a la vez que se encuentran grandes cantidades de productos básicos en diversos escondites. La propaganda internacional y nacional hizo el resto transmitiendo la idea de falta de solvencia del estado chileno y de falta de acceso a los recursos para el pueblo. Em:
http://www.revistalacomuna.com/internacional/1973-chile-el-golpe-imperialista/


**
Las Ollitas/ Sergio Ortega

La derecha tiene dos ollitas
una chiquita, otra grandecita.
La chiquitita se la acaba de comprar,
esa la usa tan sólo pa' golpear.

Esa vieja fea
guatona golosa
como la golpea
gorda sediciosa.
Oye vieja sapa
esa olla es nueva
como no se escucha
dale con la mano.

La grandecita la tiene muy llenita
con pollos y papitas, asado y cazuelita.
Un matadero clandestino se las da
de Melipilla se la mandan a dejar.

La derecha tiene dos ollitas
una chiquita, otra grandecita.
La chiquitita se la acaba de entregar
un pijecito de Patria y Libertad.

Óigame señora
no me agarre papa
con eso que dice
esa vieja sapa.



*** nossa prisão na Ilha Quiriquina em:



Nenhum comentário: