Texto de Antonio Prata, publicado na Folha de São Paulo em 27.4.2011.
Adorei!
A SEGUNDA METADE do século 20 assistiu à fragmentação das lutas e ao
alargamento dos direitos: os negros se organizaram, as mulheres se organizaram,
os judeus se organizaram, os gays se organizaram -até os ruivos, ouvi dizer,
têm associações contra o preconceito cromocapilar que, parece, sofrem por aí.
Ótimo. Hoje, o sujeito pensa duas vezes
antes de pintar suásticas ou enfiar um cone branco na cabeça, vestir os lençóis
da cama e sair queimando cruzes pelas ruas. O problema é que sobrou uma única
minoria, desarticulada e sem líderes, tomando na cabeça todos os cascudos que
os últimos séculos dividiram entre os grupos supracitados: os gordos.
Na supremacia magra em que vivemos, já não
se medem mais crânios para atestar a superioridade de ninguém, medem-se
abdomens. O gordo, hoje, anda com os ombros curvados e os olhos baixos, como o
judeu na Alemanha, em 1933, os negros, durante o Apartheid, uma mulher ou um
gay num ônibus, tomado pela Gaviões da Fiel. Ainda não há campos de extermínio
para obesos nem leis impedindo seu ir e vir, mas, pelas esquinas e mesas de
bar, pelas praias e parques, podem-se ouvir os cochichos, cada vez menos
discretos: "Deus do céu, será que ele não tem vergonha na cara?!",
"Devia ser proibido uma mulher dessas usar biquíni!", "Se fosse
um filho meu, internava num SPA!".
A ciência decretou, a moda difundiu,
nossos superegos aceitaram: gordo é errado. Gordo é um descontrolado -e o
autocontrole, hoje em dia, é tudo. Prega o espírito de nossa época que cada um
de nós é uma empresinha a ser racionalmente administrada, e, no balancete
diário de nossos corpos, o acúmulo de calorias é como um deficit econômico.
O gordo é um latifúndio
improdutivo, máquina parada, ciclo vicioso. Ok: o brasileiro anda comendo mal. De
fato, cada degrau que ascendemos na escala social é um buraquinho que alargamos
no cinto. É bom que o governo faça campanhas por hábitos mais saudáveis, que as
escolas ensinem educação alimentar, que meu querido Drauzio Varella nos lembre
que nem só de papilas gustativas vive o homem; que, de coxinha em coxinha,
nossas artérias vão acabar entupidas como a avenida Rebouças, às 6h da tarde.
O preconceito, contudo, essa campanha
raivosa que trata a todos aqueles que não se encaixam no diet-zeitgeist como se
fossem poltergeists, não nasce da preocupação com o outro. É o ressentimento
que faz com que as bocas que se fecham tão estoicamente à comida abram-se
vorazmente para maldizer os gordos. Pois o gordo, meus caros, é o novo
libertino. Quando o sexo era proibido, a prostituta era "feita pra
apanhar", era "boa de cuspir". Hoje, com o sexo como totem e o
torresmo como tabu, os que trocaram a penitência diária pelas abdominais e a hóstia
pela granola, buscando a transcendência pela contenção, ficam indignados com a
banha alheia. Por que é que eu preciso sofrer tantas privações, pensam eles,
enquanto outros podem viajar na maionese?
Gordos do mundo, uni-vos! Ostentais as
panças com orgulho. Há em vosso guloso descontrole uma nota de revolta contra
um mundo que encolhe; um mundo que, cada vez mais, quer menos -em todos os
sentidos.
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