16.4.21

Alexandre, meu amigo para sempre


maio de 1981

Alexandre foi uma pessoa muito especial. 

No final dos anos 60, estudante de medicina, militou em um grupo trotskista e  foi preso. Quando saiu da prisão perguntei se havia sido torturado e ele respondeu que não, que só havia levado choque nas pontas dos dedos... Assim era o Alexandre, com tanta gente sofrendo e sendo morta, ele não considerou o que sofreu como tortura.

Depois disto abandonou a medicina, e em 1971 foi morar em Buenos Aires com seu amor José Maria.

Em 1981 retornou a Porto Alegre e continuamos nossa amizade como se nunca tivéssemos estado  separados.

Em 1987, a AIDS era considerada "o câncer gay" e foi neste ano que Alexandre se contaminou.

Assim como hoje, que estamos vivendo a pandemia do COVID e têm gente andando por aí sem máscara e se aglomerando, naquele momento quase ninguém usava camisinha nas suas relações sexuais. E quantas vidas poderiam ter sido salvas!

Alexandre faleceu em maio de 1990, depois de muito sofrimento, principalmente emocional, e estivemos juntos até o fim. 

Hoje, organizando meu computador encontrei esta preciosidade escrita por ele para o jornalzinho do grupo "Grupo pela VIDDA - RS", em 1989:

"TENHO AIDS, um comentário sobre essa vivência.

Eis que, aos poucos, essa doença vai-se infiltrando. Insidiosa, lenta. Se espalhando pelo planeta. De repente explode: imprensa, entrevistas, pesquisas, paranoia generalizada. Quase pânico. Preconceito. Na Califórnia motoqueiros espancam gays.

Cientistas de todo o mundo buscam descobrir o remédio. Começam a morrer gays e outros aos milhares, aos milhões.

Nada detém a peste do nosso século.

Assim como foram a tuberculose, a lepra, a gripe espanhola.

AIDS surge agora, assustadora.

AIDS dói. Dor doída. Dolorosa dor. Dor única. solitária, intransferível. Não há como explicar.

Nem como transformar o outro em companheiro. Somente, talvez, outro aidético, ou alguém que tenha experimentado a proximidade, a possibilidade real do morrer.

Mas é sempre única. É minha, não de um outro.

Essa é então a exclusividade da AIDS.

E é aí que se toma uma experiência de descoberta, pode tornar-se. Depende de cada um. Optar pela vida ou lutar. Pessoas com câncer maligno inexplicavelmente se curam. Meditação, alimentação rica e natural fortalecendo a produção de anticorpos.

Transas espiritistas. Tudo vale, tudo tem um enorme sentido.

Não se entregar, não desistir. Com AZT ou sem AZT!

AIDS nos coloca, de modo absoluto frente a coisas inevitáveis da história do homem. Nos confronta com questões que têm acompanhado a humanidade desde que o homem é homem.

Aqui, agora. Hoje.

A crise de nossa cultura chega aos limites do possível. O planeta chega à borda: do abismo, da autodestruição, do suicídio de uma espécie inteira. Pela primeira vez na história de nossa espécie isso é possível, e provável.

Chega à borda, ao mesmo tempo, da solidariedade, da comunhão.

Se intui, se esboça.

Borda da Vida, beira da Morte. Em todos os sentidos, todos os terrenos da nossa experiencialidade. Ozônio, índios, destruição na Natureza, águas, matos, o Capital.

O Vazio se faz claro, enorme sombra - como assustadora vitrine a nos mostrar o Erro, a Queda – Hitler, Pequim, milhões. Radioatividade: Jane Fonda, Elizabeth Taylor militante da "GAPA" americana... Lennon e o pacifismo. Dylan e Caetano. Nossos ídolos se dão conta. Todos, quase. Raoni e Sting e o Amazonas: há uma teia de amor se desenhando nas entrelinhas.

É aí que eu vejo a AIDS. A que eu vivenciei. A Morte ali e a Vida, o Amor como luz, porta e revolução. Não se volta atrás.

A experiência é única, irredutível.

Todas as questões de todos os tempos e culturas, as grandes perguntas. Todas as religiões, todos os misticismos.

O QUE É A VIDA? pergunta que ressoa em silêncio, enorme.

O QUE É A MORTE? Abismo, escuro, dor? Acho que não. Passagem.

Medo de.

Então, a AIDS entra como possibilidade de libertação - mais além do preconceito.

Nossas armas - as dos aidéticos, são o solidário e o amoroso.

Nossa força. Nossa fé.

Amor de mãe, hembra, mater, matriz. A vida, o ventre, o filho, a continuidade.

Foi assim sempre.

Maria.

Há uma grande mãe chamada Terra. Raiz.

Útero.

AIDS é isso, perto disso. O outro.

É - também - a negação, o medo, o preconceito - mas, enorme, está também a mão. A solidariedade, o amor de filho, irmão, de amigo que se junta e empurra. Batalha.

Cada sobrevivente um herói, Ogum guerreiro. Exército.

Ao lado de tudo, junto com tudo, enorme, pairando enorme mão. CORAÇÃO E AIDS é isso: sofrimento. Solidão.

Dói ser gay, sem plumas nem paetês. Dói tudo isso. Dói ter AIDS.

Dói ser negro em Joanesburgo. Ser judeu em campo de concentração. Dói ser um adolescente chinês.

E dessas dores renascemos, renasceremos.

Como um grande abraço.

IRMÃO, enorme mão, enorme CORAÇÃO.

Alexandre Schneiders da Silva

Porto Alegre  - madrugada de 25/junho (São João) - Espécie de transe"


Um comentário:

Maria Betânia Ferreira disse...

Arrepiante. Profético. Minha homenagem a esse teu amigo. Bela e triste história. E recorrente.